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40 anos, ou o tempo dos Mitos

Digamos, por um instante, que o ano ainda é o de 1978, e também que há um nome por detrás daquilo que as sempre descreditadas crianças chamam de bicho-papão (boogeyman), os jovens, pelo mesmo nome, embora por sua vez não nele acreditem até que o golpe do invisível lhes rasgue a garganta, e que para os adultos é um caso de perturbação do estável, podendo ir pela alcunha de “assassino”, “paciente”, “maníaco”, ainda que alguém alguma vez já o tenha chamado de Puro Mal. Qual o nome dessa coisa tamanha, cujo atravessamento de gerações e das trocas que, a partir dele, fazem de si para si mesmas (indivíduos) e entre si (socialmente), resulta numa questão de sobrevivência, e, portanto, de crença? Mitologia. Mas ela também já possuiu outro nome, este agora próprio, encarnado, que respira e olha e se chama Michael Myers. A linguagem, aparentemente adornada de um linguajar do sagrado, não o é por acaso, assim como incide diretamente sobre a história, mas uma tão longínqua daquela grafada de maiúscula e tão sorrateira sobra a própria vida vivida, que seu alcance escorre para outrem, nisto que um povo certo tempo atrás chamou de imortalidade, um movimento de resposta, não contra o Tempo, mas contra o que não sei que virá nele, uma burla contra a perpétua impossibilidade, não nos enganamos, de antecipar tudo o que não é eu. 
Destino, esse palavriado quase arcaico e em desuso, embora citado duplamente para Laurie em 78 e para sua neta Allyson 40 anos depois, ambas por professoras que são pura voz, sempre a voz micro-cósmica da ficção a que não prestamos atenção até que algo clique, ambas enquanto observam, de certa maneira, seus destinos à janela – Destino é talvez o que tenha acontecido à Laurie quando, a pedidos do pai e contrariando o conselho do garotinho para quem servia de babá, coloca uma chave debaixo do tapete numa casa que “Lonnie Elamb disse que era assombrada”, e que portanto “ela não deveria ir até lá”. Mas, e isto como se professa em todo o cinema de horror, ela desafia, faz o que sabemos por ansiedade e por uma espécie de conhecimento prévio aquilo que de fato não deveria. Como será, então, o golpe daquilo que está além dela é algo que cinema só pode tratar por sua diegese particular, mas que, se seus inscritores (escrivãos + imaginadores da imagem) bem o souberem fazer, estará também em quadro, no quadro; e aquilo que sabemos ser Michael, apenas os ombros se inscrevendo para cruzar aquele outro destino, traz consigo a marca da respiração. Qual a evidência daquilo que está vivo? O popularismo dos primeiros socorros nos ensinou: a pulsação, batimento, e a respiração. 
O Puro Mal está, então, vivo, e, pior: o que pulsa repetidamente é nada menos que sua respiração. Mas em Carpenter ele só respira para nós: sequer um dos personagens que morre pode vê-lo ou senti-lo antes que o primeiro golpe já tivesse sido desferido. É apenas para nós a que assistimos, portanto, que ele, dito de certo modo, mas também de fato, existe. Para nós e para a crianças, sendo que para estas, assim como para todo o resto que compõe o universo disso que chamamos de horror, o que lhe falta é um rosto, aparente e precisamente porque permanecemos sem saber qual o rosto do Mal, e muitos sequer quando ele vem. Quem nele acreditava? A psicologia? Estas crianças? Somos mais inclinados a acreditar que as segundas, posto que os atos da primeira lambem tanto os beiços sobre o ato de conhecê-Lo que só acabam por fazer o invisível recuar, e numa redoma. Mas uma criança, à primeira vista, só acredita numa lógica em que aquilo que ela apelida assim o é porque precisa ganhar logo algo de palpável – um nome. Muito como no Cinema, como a efetiva lição de continuidade prova e vem reconquistar num retorno mítica “à altura”, nossa relação com as coisas e com as ações sobre elas depende de uma crença.
Quarenta anos depois, é 2018, mas não como este ano desta escrita, não como um número somável ou identificável, porque isso não interessa: ele interessa enquanto passagem fortuita ou infelizmente imensurável da urgência, ou seja, enquanto tempo do Mito, mas também enquanto reincidência do Halloween-Evento, enquanto marca-passo da interferência do Destino, horário desgraçado e certeiro dos homens, da medicina, em que o invisível e o imprevisível (menos para uma pessoa, quase um oráculo que antevê e é toda preparo) são pressurizados para dentro do mundo dos vivos, do vivido, em que se sangra. É o tempo da caça, que é a última resposta possível ao-que-virá: porque se se coloca à espreita. Em 2018, então, não há mais crianças em quem desacreditar – na verdade, como num jogo irônico, os dois garotinhos que esbarram em Michael nada dizem quando o percebem como quem é, só se afastam: a criança, agora, sabe, e o sabe sem alardear, dando um passo à nossa frente? –, e a juventude é marcada pelo signo da morte e do violável; ainda a faca, ainda o olho inexpressivo que viu o horror. Há dois motivos pelos quais Michael não respira mais e por que esta escolha de uma aparente insignificância reafirma na verdade a extrema delicadeza do que é crer.
Primeiro: porque não precisa mais marcar que está vivo (que existe), segundo, porque é cristalinamente como puro mal que ele se dá desta vez: ainda sem que seu olhar responda, ainda com a íris negra contaminando toda o desconhecimento que é nosso verdadeiro horror, os dois buracos cravados numa máscara de plástico, ele apenas se move, seu movimento é apenas matar e ele está vindo, vindo para aquela que sabe que ele vem e por que ele vem – que vêm a ser a mesma coisa. Qual a diferença? O que, afinal, risca a linha da encenação enquanto crença tanto quanto apalpa o tempo para que ele, enquanto tecnicizável por algo ainda chamado cinema, possa dar espaço à trovoada do Destino? Laurie num corpo que é pura prontidão, tensão inigualável, miserável. Semelhante à uma máquina, linha do maxilar rija como um touro, o manejo das armas quaisquer que sejam tão atrelado aos braços que essas outras técnicas são quase mesmo seus duplos, os olhos tão opacos que assumiríamos ela também ter se tornado algo além-do-homem, não fosse... Laurie vaza: à mesa de jantar, no dia de seu destino, o dia que ainda não havia chegado e para o qual ainda assim viveu: tornar-se máquina é acusar o depósito vital de toda uma vida, 40 anos agora assim mensuráveis na pele feroz porém gasta; enlouquecida, ainda que preparada. 
Mas antes de Michael, aliás, em efeito, durante ele, o teor de uma outra mudança parece ter se instalado, se aliado à pobre psicologia emperrada como uma rêmora seguindo um tubarão enferrujado para lhe roubar restos de comida – a comida, descobriremos, é o Michael enquanto crença de consumo recortável. Antes na verdade que Ele chegue à rua, o lastro escarlate é o de uma adição somada ao silêncio sabido das crianças: à psicologia, como também batendo à porta da caçadora numa cena que de imprestável só tem a resultante prática que seu oráculo central pôde mesmo anteceder: dois jornalistas. Dois sedentos por informação que, inclinados à criminologia enquanto apreensão, também já nascem apodrecidos pelo que o olhar pré-exausto de Laurie confirma: a reincidência do Halloween enquanto ciclismo mercadológico agora infectado com a vendagem de um perfil, logo a persona do bicho-papão, é duplamente uma piada. Ao menos uma que rende 3 mil dólares. Mas é também o efeito do desconhecimento: ainda queremos entender o que há por trás do Puro Mal, e é porque não cessaram de tentar entender que o destino com eles será mais violento. Assim como não se matam as maiúsculas, tampouco concebemos o bicho-papão: mas ele vem com o mesmo rosto, é pela mesma falha de conceber, de imaginação, de colocação da crença numa praticabilidade, que aquilo que ainda não tem rosto escapa e mata. Quarenta anos depois, ele assumirá a mesma máscara por estúpido deslize da quimera jornalista-psicologizante, e a única não-estúpida é também a única que vem lançar o palpite sobre o ato de crer nesse tempo do hoje.
O que pode vir depois do tempo do bicho-papão, “quando não se picotam mais abóboras”, digamos, e que a alguns ainda custou os dentes e a goela, é que a relação com o indizível que nos antecede como uma seta, mesmo que ainda não tenha chegado, não é mais o que cientista guarda no diagrama planificado do apreensível ou o que outras multiplicidades elevam ao místico, como por sinal sagrado algum jamais chega a o fazer em ambos os filmes – pela milésima vez, aquilo é tudo menos um homem, e se a religião se ausenta, a polícia e a medicina se chafurdam na própria ineficácia –; o que urge, agora, é o preparo, estar, dos dentes da cara àqueles implantados nas bordas e frestas para a captura da Criatura, nada mais que preparada. Tesa. Para uma única coisa, devir o olho do tigre que antecipa o movimento da presa; para todo o resto da vida, ter se sacrificado como último ato que se acreditou ter podido fazer. Não é curioso que a todo filme de horror subsistam melancólicas subtramas? Uma vida inteira de latência. Quarenta anos à espera de um tempo em que o estouro, a aparição devenha: quando se comprimem tanto a vinda e arsenal contra ela, que tudo é simultaneamente futuro e presente à flor da pele.  
Mas aí que caímos numa armadilha cinematográfica – porque de encenação, porque de crença, e talvez agora entendamos por que os anos sessenta tanto defenderam a colocação em cena enquanto ponto de vista inviolável sobre o mundo, mise en scéne –: aquilo que Allyson vê na janela quando o destino fala além de seus ouvidos, aquilo que imanta sua visão, que lhe surge como signo do destino, é resultado de uma troca de lugares: ela vê Laurie, que tinha visto o Mal. A lição de continuidade entre Gordon Green e Carpenter seria assim explícita? O comunicado é essa perpetuação de uma “fidelidade”, ou antes uma dobradura, um estalo dos sentidos que atualiza isso que chamamos de mitologia? Porque, se é continuidade triste e decidida, Laurie é também uma coisa a mais. A bem da verdade, uma coisa nova e que é fruto de um giro: ela é o contra-mito tornando-se um (mito) segundo, e o que a caça lhe confere enquanto algo da ordem do presente é o novo regime de crenças segundo o qual a relação que me instaura o problema se sobrepõe a emergência ou categorização dele. Que o Mal não se possa aniquilar é uma coisa, e o desaparecimento de Michael do chão ao qual o médico tinha lhe enviado a tiros bamboleia nessa deliciosa borda entre o literal e o supersticioso, como toda obra de Horror que consegue lidar genialmente com suas duplicidades.
Agora, que o tempo de sua incidência seja este em que me instalo quase à beira da loucura é uma outra totalmente diferente, e para qual os outros adultos respondem com a naturalidade do ritmo que é necessário seguir, encaixados estão na vida, no protótipo, na lógica da ocupação que seja produtiva e do trabalho que se adeque visivelmente, palpavelmente, à tal prosseguimento. Mais uma vez de volta à batalha do que é ou não visível, esta mesma que faz oscilar a eficácia e as técnicas do gênero que a simula, todos os mortos, agora, veem Michael antes que a própria vida se apague. Por que a nossa cultura paradoxalmente credita tanto à visão o poder de dizer uma verdade quanto parece duvidar dela, da verdade do visto, quando outro alguém acusa ter visto algo? A relação de crença é também uma de interesses? Do mundo das superstições vamos ao das necessidades escancaradas: só convém à filha acreditar em Michael, só lhe é plausível concebê-lo, quando sua invisibilidade recebe um rosto mascarado presente, simultâneo; quando agir se torna mais que nunca uma questão de vida ou morte.
O Puro Mal, antes quesito do imaginário, escapa novamente, e se ele não precisa respirar para ser atestado de sua vida, é aos olhos que o horror se endereça sem mediação: mas ainda pela máscara, uma máscara irresponsiva mesmo quando acuada ao limite, como assombra em seu gesto final, como se para dizer que algo insiste em perdurar: a despeito da imobilidade que, na cena inicial, quarenta anos antes, caracterizava o menino Michael travestido de palhaço, sua última resposta é também uma de ausência. Aquilo que mata, que se move para isso, também se detém, e parece-nos que com ainda maior ênfase quando o gesto que o compôs se fecha com o que o decompõe. Uma coisa resta, ainda, enfim. Uma coisa “é a mesma”: ele não tem rosto e vai por vários nomes. Quais são eles? Deus, Caos, Mal, Diabo, Todo... outros tantos que ainda não sabemos. Mitos se inventam no movimento de sua transmissão, mas virão sempre sob uma máscara para qual a nova lei e única resposta é aguardar sob preparos – não é mais, portanto, que ninguém ouviu (acreditou em) Laurie, mas que foi necessário o sacrifício dela para conter a estupidez de toda a descrença diante do que já foi visto e visto repetidamente. O destino, ao que parece, encontra seu malicioso jeito de se endereçar. Laurie pode ser o novo Mito na medida em que é a resposta tornada corpo tornado máquina de caça; Allyson, a garota que teve à mão uma faca. O que gritam os humanos quando tudo que lhes é externo conspira contra eles, com um cálculo quase artesanal em seu golpe contra o previsível, o estável, o movimento natural de inspirar expirar? Gritam: maldição!
Pobres mulheres, amaldiçoadas por homens com máscaras. Bravas mulheres de dentes cerrados. 

Comentários (1)

Paulo Faria Esteves | sexta-feira, 02 de Novembro de 2018 - 09:22

A foto associada a este artigo está muito boa!😁 Jamie Lee Curtis e Michael Myers bancando um casal com problemas, hehe...

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