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Coleção Jean Cocteau


A história de Jean Cocteau dentro da tradição do cinema francês é quase um capítulo à parte. Antes de cineasta, ele já atuava como poeta, romancista e dramaturgo, o que faz dele um dos artistas mais completos do século XX. Seu cinema, misto de todas suas influências diversas, nunca encontrou paralelo com os movimentos do cinema francês de sua época, e Cocteau atravessou o período clássico até o inicio da nouvelle-vague alheio às mudanças de linguagem, forma e temas que aos poucos moldavam a evolução que marcou o período. Pelo contrário, ele se reinventava em todos esses pontos por si só a cada novo filme. A escolha desse nome tão único para uma nova coleção foi um acerto da Obras-Primas do Cinema e seu novo box Jean Cocteau, por trazer ao home vídeo os títulos mais importantes de um cineasta até então ignorado no mercado. 

O digistack traz dois DVDs, quatro filmes com os respectivos cards que reproduzem a arte dos pôsteres originais. Detalhe importante: duas dessas artes foram desenhadas pelo próprio Cocteau em uma espécie de autorretrato, que também é usado na arte da capa e do interior do box. Nos extras, 90 minutos de um material incrível de entrevistas com o cineasta, análises sobre os efeitos especiais que ele mesmo se encarregava de produzir em suas películas e o papel da música na composição dramática de suas obras (com foco no jazz), além de um especial sobre o processo de restauração de A Bela e a Fera (La Belle et La Bête, 1946). Tudo, claro, em qualidade de imagem e som remasterizada. 

No primeiro disco, O Sangue de um Poeta (Le Sang d’un Poète, 1930) inaugura a coleção. Média-metragem e primeira produção de Cocteau para o cinema, o filme traz de cara a ideia de autorretrato que ele costumava tanto imprimir em suas obras, além de já desenhar alguns dos temas e conceitos que ele voltaria a desenvolver em trabalhos futuros, com a viagem através de dimensões e as pitadas de surrealismo e fantasia, tudo para discutir a eterna questão do conflito do artista com sua própria arte e identidade. A Bela e a Fera, segundo filme do disco, é uma releitura renascentista do clássico literário francês do século XVIII e talvez a melhor adaptação dele para o cinema. Ao mesmo tempo em que imprime sua classe e enorme apuro visual, Cocteau abraça a raiz de conto de fadas e se permite passear pelo romantismo e pela fantasia, balanceando em perfeita harmonia suas formações com literatura, cinema, música, poesia e teatro. 


O segundo disco traz a grande obra-prima do diretor, Orfeu (Orphée, 1950). Inspirado no personagem mitológico que se dispõe a ir até o inferno em busca de sua amada, Cocteau atinge a maturidade enquanto artista e erige um realismo mágico fascinante, sabendo conciliar em cena elementos de ilusão e realidade com natural interação. Novamente se projetando no personagem principal, ele volta a atravessar o espelho em busca de uma nova dimensão, em um tipo de egotrip no qual encara sua persona artística e sua obsessão pelo inatingível e pelo sublime. Em O Testamento de Orfeu (Le Testament d’Orphée, 1960), segundo filme do disco, o cineasta engata uma viagem no tempo e aproveita para revisar sua própria obra, vida pessoal e legado, em um tipo de jornada que lembra muito o que o italiano Federico Fellini viria a fazer pouco tempo depois na obra-prima (idem, 1963). Com o próprio título denuncia, este é o testamento consciente deixado por Cocteau ao cinema, e não à toa seu último longa-metragem. 

A mistura do clássico com o vintage, do tradicional com o subversivo, fez de Cocteau um dos cineastas mais inovadores e importantes do cinema francês até hoje, embora nem sempre tão lembrado quanto outros de seus conterrâneos. A oportunidade de conhecer ou revisar sua obra está toda neste lindo box, que teve o cuidado de selecionar filmes de todas as etapas de sua carreira e assim oferecer um panorama completo de sua arte e processo de amadurecimento. Não deixem de conferir. 

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