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Dia do Escritor: Filmes Sobre a Escrita

“Uma história não tem princípio nem fim, só portas de entrada. Uma história é um labirinto infinito de palavras, imagens e espíritos em conluio para nos revelar a verdade invisível sobre nós mesmos. Uma história é, em definitivo, uma conversa entre quem narra e quem escuta, e um narrador só pode contar até onde vai sua perícia, e um leitor só pode ler até onde está escrito em sua alma. Essa é a regra fundamental que sustenta qualquer artifício de papel e tinta, porque, quando as luzes se apagam, a música se cala e as poltronas da plateia ficam vazias, a única coisa que importa é a miragem que ficou gravada no teatro da imaginação que todo leitor tem em sua mente. Isso e a esperança que todo contador de história carrega dentro de si: de que o leitor tenha aberto o coração para alguma de suas criaturas de papel e emprestado a ela algo de si para torná-la imortal, nem que tenha sido por alguns minutos...”

Carlos Ruiz Zafón, em trecho do livro O Labirinto dos Espíritos

Confira abaixo uma seleção de 10 filmes para lembrar do Dia Mundial do Escritor: 


Crepúsculo dos Deuses (1950)

Um dos maiores roteiristas de Hollywood, Billy Wilder provou inúmeras vezes que o texto e os diálogos podem ser um dos pontos mais fortes de um filme. Antes de existir em imagem, os filmes afinal começam em sua maioria na mente e nas páginas de um roteiro. Ao tratar dessa profissão muitas vezes ingrata, o diretor e roteirista erigiu com Crepúsculo dos Deuses um dos retratos mais fiéis da vida de um escritor que se dobra contra suas próprias ideias e imaginação para poder ganhar a vida com a única coisa que sabe fazer. Não à toa, é engolido pelo mundo de sonhos e ilusões fáceis da Hollywood, até deixar para trás qualquer traço de criatividade e orgulho para poder sobreviver de sua escrita, mesmo que não reconheça nela qualquer sinal de sua identidade. De tão influente, o filme inspirou outros plots parecidos sobre roteiristas em crise, como foi com os irmãos Coen no icônico Barton Fink - Delírios de Hollywood (1991).  


Tenebre (1982)

O italiano Dario Argento refletiu parte de sua própria pessoa na figura de um escritor policial que tem suas obras copiadas na vida real por um terrível serial killer. Tenebre é uma das obras-primas do diretor e um dos exemplares máximos dos gialli. Em um jogo de metalinguagem, a figura do criador e sua relação com a repercussão de suas criações sobre o público inicia a discussão sobre os reflexos da arte sobre a vida e vice-versa. A liberdade criativa do autor/escritor/ diretor/roteirista se funde dentro e fora da diegese do filme, rompendo qualquer barreira e se mutacionando em uma curiosa reflexão de um gênio perante o seu legado. O poder do texto, geralmente subestimado na lógica gráfica/visual dos gialli, é aqui potencializado e valorizado em seu estado mais bruto e ainda assim implícito. 


Nunca Te Vi... Sempre Te Amei (1987)

O romance entre Helene e Frank, os personagens de Anne Brancoft e Anthony Hopkins em Nunca Te Vi... Sempre Te Amei, é todo fundamentado em palavras escritas. Ela, uma escritora americana, o conhece por meio de cartas enviadas por ele, um gerente de uma pequena e resistente livraria londrina. Neste belo tratado sobre o poder das palavras em achegar e aproximar as pessoas, o diretor David Hugh Jones valoriza os escritores de todos dias, o autor que existe mesmo nas pessoas comuns e sem aspirações na carreira literária, mas que de alguma forma fazem parte desse universo apenas na qualidade de leitores apaixonados. Uma música pode ser romântica, um “eu te amo” pode soar como a mais linda melodia, mas são todas manifestações efêmeras do amor. Já as cartas, as palavras escritas, podem revelar o que o que alguém pessoalmente jamais poderia verbalizar, e durar por toda uma eternidade, para além dos próprios autores. 


A Outra (1988)

Woody Allen criou diversos personagens escritores ao longo de sua carreira, muitos deles ocupando o cargo de alter-ego do diretor, mas nenhum foi tão bem explorado nessa característica quanto Marion Post (Gena Rowlands), de A Outra. Após alugar um apartamento como refúgio e recanto de paz para colocar as ideias em dia e conseguir escrever um pouco, Marion se vê intrigada pelas confissões de sua nova vizinha, graças a um problema de acústica que lhe permitem ouvir nitidamente o que ela revela a seu terapeuta. Ao invés de se concentrar em seu livro, ela passa a se tornar obcecada por aquela mulher. Allen trata aqui da imprevisibilidade como o maior combustível criativo para um escritor em busca de ideias, que de repente chega e o arrebata em uma direção totalmente nova. O diretor voltaria a uma viagem mais aprofundada nas neuroses de um escritor em Desconstruindo Harry (1997).  


Louca Obsessão (1990)

Escritores são personagens recorrentes em livros de Stephen King, que costuma colocar em suas histórias parte dos prazeres e tormentos, bênçãos e maldições, que envolvem o dom da escrita. Stanley Kubrick adaptou uma delas em O Iluminado (1980), no qual Jack Nicholson interpreta um escritor que perde totalmente a cabeça e sai perseguindo a família com um machado. Já Rob Reiner pegou o outro lado da moeda e mostrou a visão dos leitores com Louca Obsessão, no qual adapta a história de uma fã que sequestra o autor de seus livros favoritos a fim de obrigá-lo a escrever uma nova história. Annie Wilkes (Kathy Bates) é a encarnação de todos os medos e paranoias de qualquer escritor. 


À Beira da Loucura (1994)

Um universo engolido pelo outro. O que John Carpenter faz em À Beira da Loucura é literalmente uma sobreposição de mundos, formas, texturas e maneiras de encarar o ato de criar e se relacionar com sua própria mente e imaginação. Sendo um filme de terror, a viagem não é das mais agradáveis. Se a princípio tudo parece uma apropriação do universo de Lovecraft, logo Carpenter supera a própria condição de mero revisionista para chocar a imagem e o texto até implodir em um formato no qual os dois dialogam em seu estado mais puro e contraditório, e assim exprime todos os horrores e fantasmas capazes de habitar a mente criativa e ilimitada dos grandes gênios da literatura e do cinema. É Carpenter redimensionando Lovecraft dentro de sua concepção visual inigualável, ou apenas Carpenter engolido como parte de um universo de palavras impronunciáveis e segredos terríveis que até hoje jamais foram devidamente desvendados na obra do escritor?


Shakespeare Apaixonado (1998)

Dele vem quase toda a noção de romantismo do mundo contemporâneo. Em seus poemas e versos, William Shakespeare colocou em palavras todas as contradições que existem no amor, e não à toa é um dos escritores mais lidos e famigerados de todos os tempos. Com Shakespeare Apaixonado, o escritor vira personagem, e de repente sua aparente sabedoria em exprimir o amor em palavras se revela fruto de uma inacreditável inexperiência prática. A bela comédia romântica multi premiada imagina a figura do bardo diante daquele sentimento que ele mesmo ajudou a definir, vítima das mesmas incertezas, alegrias, saudades, vontades e tragédias com as quais acometeu seus personagens ao longo de inúmeras obras. Shakespeare Apaixonado revela uma verdade que quase todo autor procura fugir, e que Fernando Pessoa reforçou décadas antes: o poeta é um fingidor.  


Adaptação (2002)

Charlie Kaufman é autor e personagem ao mesmo tempo no labiríntico Adaptação, filme que reforçou sua fama criador peculiar em Hollywood. Na era de adaptações cada vez mais inusitadas, o filme trata da vida de um roteirista escalado para adaptar um livro sobre orquídeas raras para o cinema. Como tornar esse material interessante dentro da engrenagem comercial do cinema americano? Surge então a ideia de adaptar um livro que é impossível de ser adaptado, sendo essa ideia o próprio filme em si. Confuso? Pois Kaufman nunca foi de facilitar para o público. E como tornar fácil de entender a mente de um escritor, sujeita às suas constantes variações de humor, condições e sentimentos de qualquer artista? Se nem ele se entende, só nos resta apreciar em Adaptação a loucura maravilhosa que é o processo criativo. 


Mais Estranho Que a Ficção (2006)

Um personagem ciente de que está sendo narrado dentro de uma ficção é o ponto de partida de um dos filmes mais criativos sobre a relação de um escritor com seus personagens e universos. Do carinho excessivo à súbita renegação da própria criação, os personagens de Mais Estranho Que a Ficção dependem do humor de um autor onipresente, que dita seus caminhos como um deus-escritor, mas logo se revoltam na condição de meras marionetes. Com muito humor e graça, Marc Foster faz seu cinema indie refletir sobre o poder que existe no ato de inventar, no prazer de criar, a ponto de a criação um dia se tornar independente e maior que o seu próprio criador. São como filhos, que levam para as próximas gerações as partes imortais de seus pais. 

Comentários (4)

João Vitor G. Barbosa | quarta-feira, 25 de Julho de 2018 - 22:42

Heitor sempre com suas ótimas listas. Adaptação, pra mim, é o filme definitivo pra todos aqueles que já tentaram escrever alguma coisa elaborada na vida. Charlie Kaufman é um gigante mesmo.

Como sempre, dou meu pitaco pra incrementar os títulos hehe. Desconstruindo Harry (1997), do Woody Allen.

João Vitor G. Barbosa | quarta-feira, 25 de Julho de 2018 - 22:43

Ah, e Kaufman não dirigiu Adaptação. Spike Jonze dirigiu. 😉

Conde Fouá Anderaos | sexta-feira, 27 de Julho de 2018 - 12:20

Podia ter acrescido esses dois na lista meu amigo:
http://www.cineplayers.com/filme/providence/4414
http://www.cineplayers.com/filme/o-homem-de-la-mancha/12237

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