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Artigos

Diário do Festival de Brasília 2005 - parte I

TERÇA-FEIRA, dia 22 de Novembro

Mais um ano, mais um festival. Brasília, sempre carecida de grandes eventos culturais, pára na última semana de Novembro e a abandonada sala do Cine Brasília vira o ponto de encontro mais cobiçado da cidade. O Festival, criado e defendido por Paulo Emilio Salles Gomes, vem em sua 38º edição celebrar o melhor (e, porquê não, também o pior) do cinema nacional, dividindo o espaço entre filmes experimentais de estudantes até grandes produções globais.

A cerimônia de abertura acontece hoje, na sala Villa-Lobos do Teatro Nacional e conta com, além das solenidades, a exibição do filme hors concours Oscar Niemeyer, A Vida é um Sopro, de Fabiano Maciel (uma ótima maneira de se começar o festival na capital), além de um concerto com a Orquestra Sinfônica. Porém, como esse evento de gala é só para convidados, pulemos discretamente para o segundo dia...

QUARTA-FEIRA, dia 23 de Novembro

Segundo dia de Festival, primeiro das mostras competitivas. Novamente, a desorganização de horários nos obriga a escolher entre pegar a mostra Brasis às 15h no Teatro Nacional, ou encarar a longa fila à frente do Cine BSB para comprar ingressos para a sessão das 20h30 da mostra em 35mm, e quem trabalha à tarde não pega nem um, nem outro. Qual a dificuldade de se vender ingressos antecipadamente?

Pois bem, após uma castigada de São Pedro à tarde, chego perto do início da sessão, já ciente dos tradicionais atrasos, para deslumbrar a metamorfose por que passara o local; a ala de alimentação, já totalmente montada e iluminada, burburava a pedidos e chopps, um obscuro bar montado na hora numa das saídas do cinema e, na outra, o estande da Petrobrás, mais organizado e trabalhado que o do ano passado, desta vez com uma grande área a céu aberto. Corro para dentro da sala para garantir um lugar privilegiado nas... escadas. Com cerca de 1/3 do cinema reservado às equipes, imprensa e às centenas de convidados, e a ditadura da bolsinha que, pilantramente, reserva três ou quatro lugares ao lado para os amigos que chegarão em cima da hora, conseguir um bom cantinho nas escadarias é uma epopéia.

Após um tempo de espera, entram os dois apresentadores, que prontamente lêem a extensa lista de patrocínios, e chamam ao palco equipe e elenco das três produções de hoje. À exceção da entrada do elenco de À Espera da Morte, amplamente aplaudida, e durante o discurso do diretor do longa Incuráveis, cuja filha pequena, presente no palco, parecia entreter muito mais a platéia que os longos agradecimentos, não houve nada de excepcional nas apresentações. Sem mais delongas, começa a bateria de filmes:

ÃGTUX, de Tânia Anaya – 24 min. (Minas Gerais/Distrito Federal)

Documentário sobre uma tribo indígena no vale do Mucuri, e seu povo, tradicional contador de histórias. Ou, ao menos, era essa a intenção do curta. Ele até que começa bem, mostrando as divergências da população da cidade vizinha à tribo, Santa Helena, e o desconhecimento quase que total entre as duas culturas, que moram tão perto uma da outra. Apesar de certos cacoetes amadores nas filmagens, o filme ameaça engrenar quando entra numa seqüência animada no estilo de Robert Breer, toda feita usando vocábulos visuais indígenas, enquanto uma voz em off explica o difícil processo de aproximação entre a equipe e a tribo, e que esta se deu, inicialmente, pela animação. O filme é recheado de curtas seqüências animadas em arte indígena, o que acaba se tornando um fator diferencial e enriquece o projeto que, uma vez que tem o foco voltado para a aldeia, se perde totalmente.

Sem saber exatamente o que filmar, segue-se uma sucessão de imagens confusas e jogadas, sem nexo ou proposta narrativa alguma, não servem nem para mostrar o estilo de vida dos índios, nem a região. As próprias idéias são mal aproveitadas; ao passo em que começava-se a mostrar o forte vínculo da tribo com a água, o desenvolvimento é totalmente posto de lado para mostrar mais imagens aleatórias; a idéia principal de uma tribo contadora de histórias também não se realiza, já que apenas uma história é realmente contada, e o filme perde a oportunidade de fazer dela uma ótima animação, preferindo apenas ilustrar algumas cenas. No final fica-se apenas com uma leve idéia da rica arte daquele povo, bem utilizada nas animações, e com a impressão difícil de assimilar de como um projeto que durou 5 anos, e com um tema bastante vasto, tenha gasto 24 minutos para não realizar nada.


À ESPERA DA MORTE, de André Luis da Cunha – 16 min. (Distrito Federal)

Talvez o filme mais aguardado da noite, uma produção candanga atuada pelo grupo local de teatro Os Melhores do Mundo, encena a tragédia do submarino russo que naufragou, e teve a tripulação presa por vários dias. Todo falado em russo, com um forte sotaque português, esta comédia caminha o tempo todo entre os filmes de ficção B e as séries antigas americanas de TV, usando-se do humor satírico clássico do grupo. Há algumas boas sacadas, como os nomes nos créditos, primeiramente em russo, que depois vira português, ou ao tocarem Insensatez, de Tom Jobim, em russo, além da ótima modelagem do interior do submarino, bem construído, mas claramente falso, dando mais um ar de brincadeira com as ficções antigas; uma pena que, com bastante potencial, o filme se mostra bem pouco engraçado e lugar-comum no conjunto, estando certamente aquém das realizações teatrais da trupe. Não é um ótimo filme, de maneira alguma, mas tem seus méritos, e não merecia a salma de vaias que recebeu no fim da projeção.

INCURÁVEIS, de Gustavo Acioli – 82 min. (Rio de Janeiro)

Um homem senta solitário numa mesa de bar, quando recebe as propostas de uma prostituta. A proposta inicial, de R$ 100,00 por uma noite com tudo incluído, é reformulada pelo sujeito: R$ 500,00 pela noite, e tudo que ela tinha que fazer era ouvi-lo. Acreditando não passar de uma brincadeira, ela aceita, e acredita ainda poder seduzi-lo, mesmo após ele se revelar um homem bem mais mórbido e solitário que sua impressão inicial no canto do bar passava. Após uma transa rápida e que fugia aos planos do homem, começa um jogo de sedução e aproximação entre os dois, e a relação vai se revelando cada vez mais complexa.

Durante a noite toda, apenas dentro daquele microuniverso do apartamento da mulher, eles vão deixando transparecer suas verdadeiras intenções e desejos, facetas escondidas do mundo e que afloram com uma certa insegurança, mas uma vez que começam, não conseguem mais parar, e os papéis constantemente se invertem. O clima de incerteza e solidão aflora constantemente durante todo o filme, e o medo de um relacionamento mais profundo descoberto na hora por ambas as partes lembra muito a temática de Wong Kar-Wai, algo que é reforçado pela fotografia escura e sóbria, que reflete fortemente as poucas luzes do ambiente. A experiência existencial partida de um encontro banal já foi muito utilizada no cinema e, apesar de não oferecer nada de realmente novo, é muito bem construída dentro do contexto.

E se o filme funciona, é devido à direção segura e firme do iniciante diretor (não à toa o filme ganhou o concurso de melhor longa estreante da Câmara), porque o roteiro é nada mais que medíocre. Diálogos presunçosos, algumas situações interessantes, mas pouco convincentes; em especial a “transformação” inicial dos personagens ocorre muito abruptamente, e não deixa de soar forçado. Também mantém muito a estrutura teatral da peça na qual o filme se baseou; o roteiro tem um bom argumento, mas merecia um melhor trato. E, se os diálogos por si só já contribuem para se bagunçar o clima, que deveria ser mais realístico, pelo menos no começo, as inflexões erradas dos dois atores não ajudam em nada, em especial a da mulher, que é realmente um elemento distoante no resto do elenco. Mas o primor está realmente na parte técnica e na direção, que, mesmo por vezes tentando demais ser “de arte”, consegue segurar bem os elementos do filme e impor bom ritmo, algo que se torna essencial num filme que trabalha abaixo da superfície como este.

À saída do cinema, as várias vans para levar o personel vip tumultuaram um pouco a única saída, mas nada de desesperador. Levemente satisfeito com a noite, pego meu papelzinho de votação que se recebe junto com o ingresso e vejo que eles não mudaram o sistema simplório de voto (e que, não obstante, considera um filme, no pior dos casos, “Razoável”). Para quem estiver curioso, dei Razoável, Bom e Ótimo para os três filmes, respectivamente. Até amanhã, e bom festival para todos que o forem assistir!

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