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Encontro histórico em Tiradentes

Agradecimento

Com a trágica e cruelmente irônica morte de Eduardo Coutinho (80 anos), no último domingo (2), o cinema brasileiro se despediu de um dos maiores cineastas da sua história. Jamais conheci Coutinho pessoalmente, como tiveram oportunidade de fazer alguns amigos, nem participei de qualquer evento com a presença do diretor; independente disso, a contundência de sua obra, os registros fundamentais da beleza da vida e dos mistérios da arte impressos nela, são de uma importância imensa para todos que lhe permitiram a oportunidade de falar através dos filmes.

A perda de um grande cineasta nunca deixa de ressaltar também a importância da preservação e da valorização da história do nosso cinema. E é triste e ao mesmo tempo simbólico receber a notícia da morte de Coutinho dois dias após um dos momentos mais inesquecíveis da minha ainda breve trajetória cinéfila (e certamente de tantas outras pessoas que compartilharam os assentos do Cine Teatro da Mostra de Cinema de Tiradentes), quando apresentada uma brilhante aula de cinema, de cultura e de vida: o seminário com Andrea Tonacci (69 anos) e Luiz Rosemberg Filho (70 anos), dois cineastas que se mantiveram historicamente distantes dos holofotes, condicionados por suas próprias convicções. 

Ao programar esse encontro, convocando ambos para debaterem seus processos de criação (entre outras questões fundamentais sobre o cinema e as artes em geral), a 17ª edição da Mostra de Tiradentes estabelece um marco histórico nos eventos recentemente realizados no país. A chance de ouvi-los e, posteriormente, na sessão de encerramento da Mostra, de acompanhar duas realizações inéditas dos diretores (o média Já Visto Jamais Visto, de Tonacci, e o curta Linguagem, de Rosemberg), é de uma riqueza inestimável. Quando no futuro, como Coutinho, não mais pertencerem a este mundo (uma fatalidade à qual todos nós estamos condicionados), restarão os filmes e restarão também lembranças de momentos como este, semelhante ao que muitos puderam ter com Coutinho em outras datas.

Sobre os filmes

Já Visto Jamais Visto

O grande artista é também aquele que, mesmo mirando para si mesmo, acerta o mundo ao invés do próprio umbigo. Na apresentação antes da exibição de Já Visto Jamais Visto, o modesto Andrea Tonacci destacou que se tratava de um trabalho extremamente pessoal, uma obra intimista e sem objetivo evidente de atingir outros públicos que não o próprio realizador. Um “filme de montagem” em suas palavras, porque composto de fragmentos imagéticos registrados em anos e propósitos muitos distintos uns dos outros. Uma coletânea de takes de ficção, documentário, filmagens caseiras e registros pessoais, como as viagens realizadas pelo mundo junto de seu filho, Daniel Tonacci, durante a infância dele, na década de 1970 - imagens vistas porém jamais vistas, afinal, jamais projetadas e observadas por tantos olhares numa tela de cinema, onde tudo ganha um sentido maior. 

Pela característica do projeto, durante seu pronunciamento pré-sessão, Tonacci pediu a compreensão geral, já que confrontariam ali uma exposição muito peculiar de sua intimidade – talvez por imaginar que estes registros pudessem ser menos afetivos a olhares estrangeiros àquelas memórias. A doçura low profile do diretor é plenamente proporcional à beleza e ao simbolismo de Já Visto Jamais Visto, filme que, ao final da projeção, deixou todo mundo realmente emocionado.

Trabalhos tão singelos e verdadeiros como Já Visto Jamais Visto nos relembram claramente a força do cinema, sua complexa mediação e sublimação da existência, da memória, da história dos homens e dos espaços transitados por eles. A delicadeza de Tonacci, cineasta que lançou oficialmente apenas dois longas e alguns curtas-metragens, é de uma expressividade tão singular que deixa a clara sensação de que aquele fluxo de memórias, de imagens tão vivas, continuaria nos impressionando sem cansar caso tivessem oito ou nove horas de duração além dos seus enxutos 40 minutos. Por que o cinema, antes que de personagens, é feito de vidas, e cresce quando elas pulsam da tela.

 

Linguagem

Interessante observar o quanto ambos os filmes, Já Visto Jamais Visto e Linguagem, refletem da personalidade dos seus realizadores. Se o primeiro é de uma afetividade própria ao comportamento de Tonacci, Linguagem alinha-se perfeitamente aos discursos incisivos, ácidos e questionadores de Rosemberg.  Das referências à cultura erudita (na música clássica, na poesia, nas citações a filmes e autores do cinema) às imagens pornográficas inseridas lado ao lado com outras de violência como um questionador jogo de choques, passando por críticas corrosivas contra a televisão e a manipulação política, o filme trabalha com fusões, colagens e experimentações para traçar diversos paralelos que reforçam ainda mais suas convicções sobre a realização cinematográfica, a mídia e a cultura popular.

Com duração de aproximadamente 20 minutos, o curta passeia livremente por ideias, conceitos e observações montadas em pequenos blocos, alguns mais e outros menos interessantes, porém todos particularmente arredios e intensos. Dois momentos merecem destaque: a carta escrita pelo próprio Rosemberg e lida por uma atriz, cujo rosto é enquadrado frontalmente e inserido pela montagem em um quadro menor da tela; e a abertura, com pequenos zooms que se aproximam de recortes colados em uma superfície plana, revelando imagens históricas, de filmes e artistas, que contemplamos sob condução da trilha-sonora. No geral, um filme de ideias tão vibrantes que é difícil não sair plenamente motivado a admirar o realizador por sua coragem e sinceridade (e esperar por seu próximo longa-metragem, que deve ser finalizado em breve).

Filmes vistos durante a 17ª Mostra de Tiradentes

Comentários (5)

Adriano Augusto dos Santos | quarta-feira, 05 de Fevereiro de 2014 - 10:29

Muito bom hein ?
Deve ser ótimo ter essa oportunidade.
Ouvi-los em palavras,num mesmo ambiente.

Tonacci é muito interessante,Rosenberg acho que não vi.

Marcos andré Pereira | quarta-feira, 05 de Fevereiro de 2014 - 14:07

Do do tonacci só conheço bang bang, mas já vale pela carreira inteira de muitos.

Daniel Dalpizzolo | quarta-feira, 05 de Fevereiro de 2014 - 15:00

veja serras da desordem, marcos. vai fortalecer ainda mais sua convicção.

Ted Rafael Araujo Nogueira | quinta-feira, 06 de Fevereiro de 2014 - 17:09

Bang Bang é uma aula do cinema alcunhado de subversivo. Tonacci é foda pra caralho.

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