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Entrevista 06 - Leonor (Lolô) Souza Pinto

 

Esta é uma matéria produzida em parceria entre o Cineplayers e a Downtown Filmes, com o intuito de divulgar, redescobrir e reapaixonar o público brasileiro pelos nomes importantes da nossa história cinematográfica.

Foto do site oficial.

Atriz e pesquisadora, formou-se na UNIRIO, começou sua carreira no teatro, depois cinema e televisão. Por seu trabalho em O Vendedor, primeiro filme brasileiro em que atuou, foi premiada como melhor atriz em dois festivais - Gramado e RioCine, 1990. De 1996 a 2001 fez mestrado e doutorado na França, analisando a ação da censura política no Brasil nas artes de interpretação: teatro no mestrado, cinema no doutorado. De volta para o Brasil, decidida a disponibilizar a documentação da censura que pesquisou, montou o projeto Memória da Censura no Cinema Brasileiro, que dirige até hoje.

Em 2005, estreou o site do projeto disponibilizando gratuitamente seis mil documentos. Em 2007, mais nove mil documentos foram incluídos e o patrocínio cultural foi descontinuado. A meta final do projeto são 120 mil documentos no ar. Para financiar a continuidade dos trabalhos, o Projeto “Memória...” agora oferece espaço para anúncios publicitários e aceita doações de pessoas físicas e jurídicas.

Para isso, basta entrar em contato.

 

1. Como começou o projeto “Memória do Cinema Brasileiro”? Quais as maiores dificuldades, e que tipo de retorno recebeu da comunidade artística e do público em geral?

Leonor Souza Pinto: A pesquisa para o doutorado me revelou a necessidade urgente da conscientização para a preservação, inexistente no Brasil naquela época. Eram filmes se perdendo, os processos de censura unicamente acessíveis diretamente na fonte. O quadro era desolador. Resolvi, assim, que todo o material que eu havia coletado para a tese seria disponibilizado gratuitamente pela internet e em mídia removível. E assim, nasceu o projeto “Memória...”. O primeiro projeto do gênero no Brasil. Por seu caráter de ineditismo, as dificuldades foram inúmeras. Tudo era novo e precisamos criar uma metodologia de trabalho ao mesmo tempo em que produzíamos. O segredo para não esmorecer era resolver cada questão na medida em que se apresentava e caminhar, caminhar. Um passo após o outro, sem projetar dificuldades. Eu dizia que a expressão “E se...” não existia para nós. Quando chegar a hora, vamos resolver. Testamos, erramos, acertamos, e assim foi até o lançamento do projeto em dezembro de 2005. Para a segunda etapa, lançada em 2007, já tínhamos criado uma base sólida de critérios para cada uma das fases do trabalho. O rendimento cresceu bastante, a tensão diminuiu e conseguimos disponibilizar no mesmo espaço de tempo um número bem maior de documentos. Acho que a chave para este sucesso foi muito bom humor, otimismo, seriedade extrema e um forte espírito de equipe, que sempre nos serviu de norte.

A recepção ao projeto foi e continua sendo surpreendente. Recebo centenas de emails de usuários de todos os lugares do Brasil e de países de língua portuguesa. A maioria escreve para agradecer a existência do site, para dizer que o site tornou possível a sua pesquisa. Temos pesquisadores de todos os níveis trabalhando com o material que disponibilizamos: monografias de final de curso, mestrados, doutorados, pós-doutorados, além de produtores que buscam informações de seus próprios filmes na documentação disponibilizada. Há um mês, um problema técnico no nosso provedor tirou o site completamente do ar por dois dias. Recebi perto de cem emails de usuários desesperados que diziam que se o site saísse do ar, eles não poderiam concluir seus trabalhos. Isso mostra que nosso objetivo é plenamente alcançado, o de tornar o acesso realmente possível para qualquer pessoa onde quer que ela esteja. Isso, indiretamente, ajuda muito também na preservação dos originais, que não precisam ser manuseados a cada vez que um pesquisador pede uma cópia. Com o site, não há mais necessidade de se pedir cópias xerográficas dos processos.

2. Acompanhamos recentemente a censura do filme A Serbian Film – Terror Sem Limites, devido às polêmicas cenas de estupro de um recém-nascido e pedofilia com uma criança de 5 anos. Cenas essas que eram simuladas, através de truques de montagem. Como você vê esse cenário? O que dizer das autoridades que vetaram a exibição do filme, sem mesmo terem assistido à fita?

L.S.P.: No auge desta confusão, participei de um debate do programa da Andrea Cals, Cinema em Sintonia, que pode ser ouvido aqui.

Com eu disse lá, ou eu sou muito bobinha de acreditar em certas coisas, por exemplo, na Constituição, ou tem algo muito errado acontecendo no Brasil, a que nós não estamos dando a devida atenção. Esta questão pra mim é muito simples. Censura previa é PROIBIDO pela Constituição Brasileira, que é nossa carta magna. E, ao meu ver, nada nem ninguém pode se colocar acima dela! Ou não? Por que dias após o nosso debate, quando o Ministério da Justiça determinou a classificação do filme para 18 anos, declarou que “é de sua responsabilidade fornecer a classificação indicativa, já que nenhuma obra pode ser veiculada sem a classificação. Mas a pasta não tem competência para proibir ou liberar a exibição de uma obra.” E concluiu dizendo que “o Departamento de Justiça, Classificação, Títulos e Qualificação não tem competência de aferir a ocorrência de crime, em tese, em obra cinematográfica e, ainda, proibir a sua veiculação antes que se conclua inquérito civil, policial ou decisão judicial”.

O trecho sublinhado me faz concluir que se algum magistrado determinar que o filme comete um crime, ele pode ser retirado de circulação. Mas quem determina o que é crime e o que é liberdade de expressão? Quais os parâmetros usados para nortear esta questão? Ou não temos? Vai da cabeça de cada juiz? Se vai, não está certo. E onde estamos nós que não exigimos que isto fique muito claro? A censura é uma tradição na cultura brasileira, infelizmente. Temos que ter muito cuidado.

Sendo assim, gostaria de propor urgentemente um debate com representantes dos magistrados para que nos expliquem como é possível que determinem a proibição deste filme, ou de qualquer outro.

E vou ainda mais longe na minha opinião pessoal. À sala de cinema vai quem quer. É um filme pedófilo? Que seja. Os pedófilos irão e a Polícia Federal poderá usar as sessões de cinema para avançar nas investigações e prender muitos mais deles, não é? Porque pedofilia é crime, assistir a um filme, não é.

Censura prévia não pode. Ponto final.

3. Você entrevistou alguns dos censores da ditadura. Que impressão teve sobre eles? Havia algum tipo de arrependimento, ou tentativa se justificarem o que estava sendo feito?

L.S.P.: Entrevistei funcionários e diretores do extinto departamento de censura. Foi uma sensação muito intrigante. Porque, para mim, eu estava diante dos autores de um dos piores atos da ditadura militar contra a cultura brasileira, enquanto eles se consideravam profissionais, cumprindo o seu dever. Foi muito difícil para mim manter a isenção, mas acho que consegui. Os subalternos ficam numa situação mais confortável porque dizem: “eu só estava fazendo o meu trabalho”, mesmo que não tenha sido exatamente assim. Já os diretores, não. Estes realmente chegaram a cargos de chefia porque acreditavam que estavam fazendo o melhor para a sociedade. São muito conservadores. Sua visão é um pouco a do colonizador que chegou ao Brasil e tratou de vestir os índios. Aliás, foi o que tentaram forçar Nelson Pereira dos Santos a fazer para liberar o seu filme Como Era Gostoso o Meu Francês. O filme foi proibido porque tinha muito índio nu...

Estas entrevistas ainda estão inéditas porque são parte do material filmado para o documentário Censura, Nunca Mais, que agora vou retomar, em associação com a produtora Raconto, de Alberto Salvá e Saulo Moretzohn.

4. Que marcas a censura deixou na cultura brasileira? Acredita que ela ainda está presente no nosso sistema de classificação indicativa, ou essa situação que acompanhamos mês passado (Serbian Film) seria uma anomalia, um caso isolado?

L.S.P.: A censura nos legou severas marcas. Tantas que nós apenas iniciamos o processo de conscientização da extensão dos danos. É como um terremoto que passa espalhando devastação. Só depois, com o tempo, é que se dá a reconstrução. Durante a ditadura militar foram quase trinta anos, eu disse trinta anos, de censura. Significa que, por três décadas, a sociedade brasileira foi direcionada, manipulada e levada a acreditar nas ‘realidades’ criadas por um regime que se deu o direito de inventar realidades que o justificassem. A geração criativa e livre dos anos 60, no Brasil, não pode ter seguidores, porque a geração que veio depois dela, a minha, quando começou a falar já estava censurada, e quando a censura acabou, seu tempo também já havia passado. Isso criou um abismo no Brasil. Nosso caminho foi interrompido. No lugar dele, criaram-se mentiras, fortaleceu-se a corrupção, os desmandos, a arbitrariedade, que floresceu no silêncio imposto pela censura. Alguma semelhança com os dias atuais? Claro, este processo, sim, continuou. Resta a nós todos agora, primeiro, não esquecer jamais, e trabalhar para preservar, preservar, preservar nossos registros culturais. Depois, criar mecanismos de democratização real do acesso a todos. Isso já é um grande passo. Manter o foco e perseverar. É nisso que o projeto “Memória...” acredita, é por isso que trabalhamos. E acho que temos conseguido provar que estamos num caminho que dá bons frutos!

 

Por Leonor (Lolô) Souza Pinto

 

5. 1964 a 1966 – Fase moralista

– Defesa dos valores a da ‘tradição, família e propriedade’
A Falecida

Neste processo, o censor se dá ares de crítico e sugere que o filme seja proibido alegando que Fernanda Montenegro (diviníssima, aqui em sua estreia no cinema) faz “o seu peior papel”. Escrito assim mesmo. Veja aqui a íntegra do doc.

Este documento foi lido pela Fernanda numa reportagem feita pelo Jornal Nacional sobre o projeto e pode ser assistida aqui.

 

– Construção de uma imagem ‘bela’ do país para o mercado externo
Deus e o Diabo na Terra do Sol

Junho de 1964, parecer sugere a não liberação argumentando que o filme é “ridículo” e que sua proibição “nos livraria de ser criticados no estrangeiro”. Documento aqui.

 

4. 1967 a 1968

– Fase de militarização da direção da censura em preparação ao AI-5
Terra em Transe

Abril de 1967, parecer do censor nega a liberação, sugerindo que o filme deve ser analisado pela Direção ou pela Segurança Nacional. Documento aqui.

A comissão formada para avaliar o filme analisa o alcance da ‘mensagem ideológica’ do filme. Documento aqui.

 

3. 1969 a 1978

– Fase política, AI-5 em vigor
El Justicero

Esta é a fase mais pesada da censura na ditadura militar, porque aqui eles passavam por cima das regras que eles mesmos criaram para conseguir os seus objetivos. Nesta fase fica claro o que resulta da máxima”o fim justifica os meios”, que justificou atos como o confisco e desaparecimento dos negativos do filme El Justicero de Nelson Pereira. Autorizado com cortes em 1967, o filme é apreendido em 1969 porque um general simplesmente não gostou do filme. Foi o suficiente para que uma operação de guerra fosse montada para apreender não só as cópias do filme, o que era ‘legal’, mas o negativo do filme, isso já numa manobra ‘ilegal’. Os negativos foram retirados de dentro da Líder, sem nenhum recibo, e Nelson Pererira nunca mais os viu...

O registro do filme existe hoje graças a uma cópia em 16 mm. Resgatada da Itália. A partir dela foram feitas as cópias novas que hoje podem ser assistidas.

Processo Inteiro.
Documento.
Parecer.

 

2. Abertura I

– “Não proíbe, que dá o que falar. Esquece na geladeira...”
Pra Frente, Brasil

A capa do seu processo atesta que o primeiro certificado de censura foi pedido em dezembro de 1981.

Ocorre que 1982 foi ano de eleições gerais e de Copa do mundo. Caso típico da estratégia de ‘esquecer’ o filme para não liberá-lo, este filme só recebeu seu certificado de censura 22 de dezembro de 1982 (documento) - quando já nã poderia ‘influenciar’ as eleições ou provocar reflexões indesejadas sobre a Copa do mundo de 1970, de que trata.

Processo inteiro.

 

1. Abertura II

– “Cinema sim, televisão, de preferência, não...”
Pixote: A Lei do Mais Fraco

É um caso clássico do que virou norma no período da Abertura, e que perdurou até a promulgação da Constituição de 1988. A liberação para as salas de cinema sem cortes, e a proibição, ou liberação com cortes e para horários tardios dos filmes para a televisão.

Em 11 de agosto de 1980, é liberado sem cortes para cinema.

Apenas em agosto de 1985, depois de anos de batalha jurídica, ele é finalmente liberado para televisão com cortes, para após 22 horas

Certificado.
37 cortes impostos pelo DCDP.
Cortes decididos pelo Conselho Superior de Censura.

Saiba mais sobre:

- A Falecida
- Deus e o Diabo na Terra do Sol
- Terra em Transe
- El Justicero
- Pra Frente, Brasil
- Pixote: A Lei do Mais Fraco

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Leia também nossas colunas anteriores:

Edição nº1 - Mariza Leão

Edição nº2 - Bigode

Edição nº3 - Especial Cilada.com

Edição nº4 - Rosane Svartman

Edição nº5 - Marcos Paulo

Comentários (6)

Arthur | quarta-feira, 17 de Agosto de 2011 - 22:26

E aí ela citou só o caso de filmes nacionais. Também tem vários filmes estrangeiros que foram proibidos de passar aqui ou completamente mutilados.

Adriano Augusto dos Santos | quinta-feira, 18 de Agosto de 2011 - 09:00

Patético. Considero a maior mancha da história do Brasil.
Não conhecia El Justiceiro vou ver se vejo (ou se acho).

Rafael Junqueira | quinta-feira, 18 de Agosto de 2011 - 20:15

Excelente entrevista, apesar de curta 🙄

Uma lástima mesmo p/ a história nacional...

Felipe Tostes | sexta-feira, 19 de Agosto de 2011 - 15:45

Oi Arthur, a proposta, tanto da coluna, como do projeto Memorias do Cinema Brasileiro, é tratar da censura nos filmes nacionais. Muitos filmes estrangeiros também foram barrados, e em muitos dos documentos da censura você acha referencias a filmes estrangeiros, que filme x ou y conseguiu ser liberado, logo o filme brasileiro também deveria. É um caso muito obscuro da historia da cultura brasileira mesmo, e que merece ser mais estudado, e esclarecido!

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