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Filmes de 1999

Chegamos ao antigo milênio no nosso especial que pretende revisitar toda a história do cinema!

99 foi um ano mágico, com tantos filmes bons que vários ficaram de fora da lista, que funciona da seguinte maneira: cada editor pode escolher apenas um único filme para representar aquele ano. Isso visa deixar a lista mais variada possível e reduzir as figurinhas carimbadas de sempre, onde geralmente os trabalhos mais citados são os que acabam entrando, não os peculiares a cada gosto.

Ainda assim, mesmo com ex-editores convidados participando, muita coisa ficou de fora e cabe a você, nosso leitor, complementá-la da melhor forma possível.

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Sem mais delongas, vamos relembrar o ano 1999!



À Espera de um Milagre, de Frank Darabont

Cinco anos após o esplendoroso Um Sonho de Liberdade, Frank Darabont novamente adaptou um conto de Stephen King para o Cinema, fazendo-o, mais uma vez, com maestria. "Comovente", ao meu ver, é a melhor palavra para definir À Espera de um Milagre e a história de redenção de John Coffey (inesquecível atuação de Michael Clarke Duncan, gigante em diversos sentidos, perfeito para o papel). O próprio "corredor da morte" ganha aqui um papel de protagonista ao lado das personagens de carne e osso. Darabont e sua equipe técnica recriam a Green Mile com minuciosa frieza, tensão e crueldade. O roteiro dosa, na medida, os dramas humanos e sobrenaturais. A dialética mocinhos x vilões não deságua em clichês melodramáticos a todo instante e as mais de 3 horas de filme nos despertam um carrossel de emoções, variando entre tristeza, raiva, decepção, felicidade, alívio etc. Impossível ficarmos impassíveis. Um dos filmes mais queridos pelos leitores do Cineplayers (encontrando-se, desde sempre, no Top dos Usuários), À Espera de um Milagre é um daqueles filmes atemporais que, certamente, seguirá sensibilizando por gerações.

-- Léo Félix



Beleza Americana, de Sam Mendes

O inglês Sam Mendes, um ilustre desconhecido à época, aponta a vulnerabilidade americana com beleza poética. 1999, um ano formidável para o cinema. No cartaz convidativo, sobre um abdome jovial, descansa uma rosa sem cheiro. Essa dá nome ao título e aparece em alguns momentos ao longo da projeção. Em um deles, a personagem de Annette Bening esforça-se para aspirar seu aroma. Em sua volta, a beleza americana idealizada, o embuste da perfeição da sociedade local posta em fragmentos. Carros, casas e sorrisos do quintal para fora. É o que se vê, o que se inveja e o que se deseja, mas não se tem. Poucos filmes me fazem rir tanto. E poucos apresentam uma narração em off que tem serventia narrativa. Sua tragicomédia é conduzida por uma direção sarcástica, quase sombria, tratando da desnudação do ser humano e de vidas inanimadas. Trata de obsessões que miram a beleza da juventude e do sucesso; trata do horror às falhas, ao fracasso. Pequenos símbolos adornam a imagem. O despertar de Lester Burnham é um expoente dramático do final do século XX e é também a válvula condutora do filme, com Kevin Spacey em sua melhor forma. Os personagens são esplêndidos e suas relações igualmente fascinantes. Beleza Americana reside na fantasia onde os desejos se realizam. São vidas carentes de aromas. É um filme essencial onde a mentira traduz a verdade. E o convite a olhar mais de perto persiste até o último instante.

-- Marcelo Leme



Bom Trabalho, de Claire Denis

Claire Denis conseguiu com seu quinto filme o equilíbrio exato entre rigor estético e narrativo que a transformaria em uma das grandes cineastas da atualidade, uma adaptação livre da obra sutil de Herman Melville que aqui abdica da sutileza original e envolve o dia a dia de uma tropa da Legião Francesa ancorada numa ilha da Marselha, uma radiografia sobre o nascimento do desejo através do olhar. Partilhando com o espectador a experiência do sargento Galoup, que observa os soldados do seu pelotão sob a luz inclemente do sol do litoral, Denis e sua fotógrafa Agnès Godard exploram corpos em perfeita simetria com o desejo cada vez mais explícito de seu protagonista. A chegada de um novo soldado encaminha Bom Trabalho a um patamar diferente dentro da obra, mas que encontra eco na carreira dessa que é a maior diretora francesa hoje: o desejo sob a égide da culpa e sua expiação, num mergulho profundo nos desdobramentos particulares que o proibido é capaz de causar em quem tem muito a esconder. Encerrar um filme ao som de Corona e com a coroação de Denis Lavant numa pista de dança é o simbolismo máximo da liberdade que as vezes só precisa existir no nosso íntimo.

-- Francisco Carbone



Clube da Luta, de David Fincher

É de Giorgio Agamben a noção de que o artista contemporâneo não é apenas aquele que está inserido no seu tempo, mas sim aquele que consegue exercer um olhar para as trevas do seu tempo, quase como se estivesse de fora, como se pudesse ver o presente com a mesma distância com que observa o passado. Chuck Palahniuk é conhecido justamente por isso: toda sua literatura é focada nos limites de uma sociedade entrevada. Para felicidade dos cinéfilos, a adaptação de Clube da Luta chegou ao então jovem e empolgado David Fincher, que ganhou fama ao dirigir Seven – um ótimo thriller, cujo principal toque é o final sem concessões. Fincher fez um mergulho feroz na obra de Palahniuk e conseguiu manter seu caráter subversivo: em uma indústria famosa por trabalhar na manutenção dos valores da sociedade, o filme avança na contramão para justamente criticar esses os valores, essa sociedade incapaz de perceber-se patética em seu universo oco de capitalismo e maketing, e escancara o gigantesco absurdo das trevas do nosso tempo.

-- Rodrigo Rosp



De Olhos Bem Fechados, de Stanley Kubrick

Na sinfonia póstuma de Stanley Kubrick, postes, pessoas e edifícios lançam sombras gigantescas sobre uma Nova York repleta de segredos prestes a serem revelados, enquanto Bill Hartford caminha letargicamente pelas ruas em busca de algum alívio espiritual impossível de ser sanado. Em De Olhos Bem Fechados, o casamento é uma rede gasta e mal amarrada de desejos, ocultações e inseguranças na qual homens e mulheres projetam um no outro, num corrosivo acordo tácito, seus sentimentos mais urgentes. Das lacunas deixadas por essa rede erguem-se conspirações que dão vazão a fantasias e ilusões – reais ou sonhadas, jamais consumadas de qualquer maneira. A jornada particular de Bill Hartford durante o filme leva-o repetidas vezes a encarar-se a si mesmo: por detrás da fantasia de um homem disposto a trair para expurgar imagens desagradáveis de sua mente, há o próprio homem, limitado, indefeso e amedrontado. Sob a melodia das facadas no coração de Stalin, Kubrick retratou o casamento numa perspectiva onírica, aterrorizante e patética. No fim, senhor e senhora Hartford renovam os seus votos nos corredores de um shopping center, prestes a retornarem de volta a um inevitável ciclo vicioso que coroa a maior parte dos trabalhos do diretor.

-- Guilherme Bakunin



Dois Córregos - Verdades Submersas no Tempo, de Carlos Reichenbach

Reichenbach foi um cineasta único no nosso cinema, isso é fato. Por toda sua carreira, traduziu tendências do cinema americano e europeu em uma linguagem autenticamente brasileira, indo desde o cinema provocativo e marginal de filmes como Lilian M - Relatório Confidencial (1975), passando pelo reflexivo e carregado de simbolismo Filme Demência (1985) até chegar aos seus dramas sociais de suas últimas décadas de carreira, onde sua verve política sempre apurada passou a ter, a partir de Dois Córregos, uma função de pano de fundo em histórias que focavam plenamente nas jornadas de autodescoberta que tanto o motivavam. Enfocando um foragido da ditadura da militar e sua relação com três mulheres que moram em uma propriedade rural, narrado em ritmo de memória, o que justifica o subtítulo “Verdades Submersas no Tempo”. Com trilha sonora composta por Ivan Lins, o filme é melancólico e cadenciado, muitas vezes silencioso, mas também muitas vezes cheio de música e desejo, onde ele opõe medo da morte e busca pela vida tendo como grande referência o gênio italiano esquecido Valerio Zurlini, visto nas sequências musicais cheias de significado e nos travellings dramáticos que reforçam a luta incansável de personagens anacrônicos. Exibindo planos cheios de movimentação expansiva e compondo enquadramentos estáticos com disposição e iluminação fundamentais em sua narração (a profundidade de campo e as sombras carregam grande valor consigo), essa fase de Reichenbach iniciada aqui promoveu estudos profundos e emocionantes de personagens, que repetiria mais tarde em Bens Confiscados (2005) e no seu canto de cisne Falsa Loura (2007). Um dos verdadeiros originais do cinema brasileiro, popular, rebuscado e transgressor como poucas vezes se viu no cinema mundial dos últimos anos.

-- Bernardo D.I. Brum



Eleição, de Alexander Payne

Alexander Payne é o que costumo chamar de diretor-cronista. Seu cinema não é lembrado por sofisticados floreios narrativos, e seus críticos não perdoam o estilo próximo do novelesco que marca a maioria dos seus filmes. O que os haters não entendem é que Payne não está interessado em chamar a atenção para si, com movimentos de câmera ao mesmo tempo elaborados e que não levam a lugar algum. Mais importante que isso é a lapidação do roteiro, a profundidade da história e o desenvolvimento dos seus personagens (o que talvez explique a realização de apenas 6 filmes entre 1996 e 2016). Em Eleição, seu segundo trabalho, Payne parte do livro de Tom Perrota (o mesmo autor das obras que serviram de base para Pecados Íntimos e a série The Leftovers), e transforma uma típica comunidade estudantil numa metáfora da própria América. Neste ambiente transitam o frustrado e vingativo professor Jim McAllister (Matthew Broderick, num papel anti-Ferris Bueller), a ambiciosa Tracy Flick (Reese Whiterspoon), o tapado e boa praça Paul Metzler (Chris Klein) e sua irmã Tammy (Jessica Campbell). A eleição para a presidência do diretório acadêmico de uma escola da cidade de Omaha é o pano de fundo para Payne falar sobre democracia, casamento, fidelidade, homossexualidade, niilismo, solidão, aceitação e traições de uma forma geral, tudo isso narrado sem maniqueísmos, e com uma ironia e uma acidez que deixariam Billy Wilder com um sorriso no rosto. Payne realizou outros bons filmes em seguida, sempre retratando sua visão de uma América mais interiorana e menos conhecida, geralmente estruturando-os sob a forma do road-movie (como em Sideways e Nebraska). Mas Eleição ainda me parece seu trabalho mais bem equilibrado, e certamente um dos melhores filmes do ano de 1999. 

-- Régis Trigo



Fantasia 2000, de James Algar, Gaëtan Brizzi, Paul Brizzi, Hendel Butoy, Francis Glebas, Eric Goldberg e Pixote Hunt

Este aqui é um caso de memória que já nasceu destinada a ser envelhecida, congelada em certo ponto e finalmente transformada em cápsula do tempo – e não existe algo de errado nisso, diga-se de passagem. Fantasia 2000 (Fantasia/2000, 1999) é uma animação (ou um conjunto disso) movida por ideias cabalísticas: a sua reverência para com a importância histórica da obra de 1940 é a alimentação de seu posicionamento frente ao iminente rompimento de um milênio. Com esse plano em mãos, o que se tem é baseado no reaproveitamento das ideias do clássico: a sucessão de animações abundantes em cores, regida por uma trilha sonora pautada em música canônica, abre portas para a tentativa não exatamente de construir algo novo, mas de afirmar o seu papel dentro de seu tempo – dividindo espaço com a vestimenta dos clássicos desenhados à mão, podemos notar a presença da computadorização como algo indispensável/inevitável ao processo criativo para aqueles tempos que estavam por vir dentro do gênero. Termina ficando mais interessante se visto em VHS, se possível.

-- Victor Ramos



Fogo Sagrado, de Jane Campion

Fogo Sagrado (Holy Smoke, 1999) de Jane Campion é uma daquelas experiências de fruição visual que só encontra completude no seu último minuto. Não que toda obra não seja feita com um fim (no sentido de que ela acaba, sem contudo ser necessário a seu fim ser um término declarado para personagens ou situações): o que quero dizer aqui é que este filme mobiliza tantas transmutações para si, que chega a se tornar algo camaleônico – e sempre que seu sentido de tom dramático parece se fechar, vem uma sequência para inaugurar algo diferente e valioso, e aí o espectador pensa: é, faz sentido que assim agora o seja. Porque se tem alguma farpa imutável no percurso de Ruth Barron (Winslet) é a própria mutabilidade a que ela se lança. A princípio uma jovem alucinada por ideais de subjetivação através do sagrado das religiões indianas, arrancam-na da trip psicodélica e autossuficiente para inseri-la num aparente processo de desintoxicação para mentes obtusas: sua família acredita que a jovem estaria enganando a si mesma e contrata um terapeuta, PJ Waters (Keitel), cujo programa de três dias promete tirá-la da cegueira religiosa. E não se pode dizer que o vórtex psicológico não surte efeito, mas o interessante para o filme de Campion é que ele atinge um nível de indiscernibilidade de intenções para seus personagens que imerge o próprio espectador na catarse coletiva da mulher e sua família. Onde começa a falha do terapeuta e onde seu desarmamento emocional é parte do jogo? Até que ponto Ruth acredita no processo de cura e até onde vai sua aparente tomada de tudo aquilo como uma diversão? Mas uma coisa tem contornos definidos, e esse elemento é não só o que alavanca o nível mais próximo de verdade do filme como também é aquilo com que Campion mais sabe nos seduzir: a paixão.

-- Felipe Leal



História Real, de David Lynch

Uma das coisas mais legais em um road movie é que o personagem que inicia a jornada jamais é o mesmo que chega ao final. Alvin Straight é um senhor que decide viajar mais de 500 quilômetros a bordo de um cortador de grama para rever o irmão com quem não fala há 10 anos. No caminho, conhece pessoas com quem reflete seu passado, pondera seu orgulho e relembra passagens que formam algumas cicatrizes que jamais deveriam ser esquecidas. Lynch abandona o bizarro para contar sua mais comovente história, aquela pela qual muitas pessoas comuns podem se identificar: seja lá o motivo daquela briga, passe por cima do orgulho antes que seja tarde demais e demonstre, como puder, o esforço para que dê certo; histórias tão antigas e repetidas quanto as estrelas que servem de testemunhas para os mesmos erros de sempre. Quem diria que o mestre das bizarrices poderia ser tão sensível assim. "O pior da velhice é lembrar-se da juventude", já dizia Alvin.

-- Rodrigo Cunha



Ilusões Inúteis, de Kiyoshi Kurosawa

Kurosawa tenta filmar a vida do jeito que ela é: uma tediosa busca por significado ou algo que justifique nossa existência. E faz isso através de um jovem casal tentando reacender a chama do começo de relacionamento que, em meio a problemas na comunicação e falta de entusiasmo de ambas as partes, parecem cada vez mais distantes e sozinhos. Interessante notar a falta de diálogos com objetivo de ressaltar a incomunicabilidade cada vez mais presente no mundo contemporâneo, e em cada tentativa frustrada de restabelecerem uma ligação mais profunda, outrora existente, esbarrando sempre no conformismo de Haru e na desmotivação de Michi. Aos olhos do diretor, a insignificância vem das medidas desesperadas do ser humano, seja para serem notados (os minutos finais comprovam isso de forma sensacional) ou na rebeldia sem causa sendo justificada pela busca de algo que faça o protagonista sentir-se vivo novamente (a sequência que Haru é abordado por uma gangue na rua é de uma crueza inigualável). No fim, Kiyoshi retrata a geração moderna de um modo vazio, tedioso e com um niilismo assustador, onde até o amor é engolido pela falta de contato, no distanciamento das pessoas que, com o avanço tecnológico, parecem ter ainda mais motivos para se afastarem. A ironia da vida que faz, em plena era da comunicação, o homem contemporâneo parecer cada vez mais solitário e os relacionamentos interpessoais sendo cada vez mais engolidos pela tal da incomunicabilidade.

-- Francisco Bandeira



Magnólia, de Paul Thomas Anderson

Dizem que uma obra de arte só se completa quando percebida pelo público. Nesse sentido, “Magnólia” é uma obra de arte no mais completo sentido da expressão. Após surpreender o mundo com o excelente “Boogie Nights – Prazer sem Limites”, o jovem Paul Thomas Anderson – com a deliciosa arrogância de seus 29 anos – poderia ter escolhido a zona de conforto para seu próximo trabalho, mas preferiu se arriscar com algo ainda mais ambicioso e complexo, tanto em seus objetivos temáticos quanto de linguagem. O resultado foi um filme raro, capaz de desafiar o espectador, e que exige a participação deste para se tornar uma obra completa. Ao adotar mais uma vez a narrativa com múltiplas histórias (o que já havia feito em seu trabalho anterior), PTA criou um verdadeiro painel sobre a condição humana, com personagens complexos e repletos de dores, arrependimentos e em busca de redenção. Tudo isso exibido através de um domínio técnico incomum para um cineasta dessa idade: os movimentos de câmera, os impecáveis planos sequência, as ousadias de linguagem e o perfeito uso da trilha sonora, por exemplo, fazem do filme uma produção ágil e intensa, cujas três horas passam como se fossem vinte minutos. Com a soma desses elementos, e uma narrativa minuciosamente construída, pontuada por simbolismos que trazem ao filme múltiplas interpretações, na qual os detalhes têm importância, “Magnólia” se tornou motivo de debate e discussão até hoje. Uma reflexão sobre a importância de deixar o passado para trás? Talvez. Uma história sobre punição pelos nossos próprios erros? Pode ser. Um conto sobre acaso e destino? É possível. Uma alegoria com elementos bíblicos? Provavelmente. “Magnólia” pode ser tudo ou nada disso, de acordo com a percepção de cada espectador. Porém, entre tantas interpretações em aberto, há apenas uma certeza: a de que “Magnólia” não é apenas um filme, mas uma obra de arte. No mais completo sentido da expressão.

-- Silvio Pilau



Matrix, de Lana Wachowski e Lilly Wachowski

Ainda que contenha muitos efeitos especiais, muita pirotecnia e apelo juvenil, não se engane: Matrix é um filme denso sobre a humanidade. Na virada do século, em clima de final de ciclo que marca os tempos, neste que foi até hoje mais revolucionário já visto sobre a terra, foi uma obra visionária. Matrix, esse ambíguo filme, imensamente popular porém sofisticado, filosófico e arrasta quarteirões; fala muito sobre o passado - ainda sim apontou para o futuro. Sim, o século XX foi o mais brutal e sanguinário período até hoje, ao menos duas guerras mundiais e a completa inserção das máquinas e da tecnologia na vida humana, que se tornaram inseparáveis. Revoluções comunistas, guerra no Vietnã, Guerra Fria. Guerras ideológicas. Vanguardas artísticas. Na filosofia, virada linguística: a realidade tornou-se  pormenor: tudo é linguagem. A grande questão do mundo: qual modelo de liberdade seguir? Tal como numa jornada mitológica, como um arquétipo da epopeia grega clássica, Neo (Keanu Reeves) é o escolhido que irá salvar a humanidade, libertar o povo da escravidão e da alienação, e, por fim, revelar a “verdade”. O jovem no seu caminho encontra o seu mestre, aqui com o sugestivo nome mitológico de Morpheus (Laurence Fishburn) e a sua contra parte feminina, Trinity (Carrie-Ann Moss) que, novamente com um nome sugestivo, remete ao conceito de trindade, tão caro a todas as tradições religiosas. Humanidade explorada, contra uma classe dominante, tecnocrata, indiferente. Humanidade que segue imersa numa fantasia, num simulacro, numa realidade virtual com pouca conexão com a realidade concreta. As imagens projetadas são mais verdadeiras em Matrix. Na época, muito se falou sobre um paralelo entre o mito da caverna de Platão (passagem do livro “A República”) e o enredo do filme. A Filosofia antiga data 6 séculos antes do messias da civilização ocidental. Matrix, de 1999, foi lançado poucos anos antes da verdadeira revolução digital: segundo dados atualizados do primeiro trimestre de 2016, 1 bilhão de pessoas conectam-se só ao Facebook diariamente, sem contar as demais redes sociais e a internet como um todo. Boa parte da população mundial vive interconectada via smartphones, em todas as classes e nacionalidades. A realidade virtual se incorporou de tal forma na cultura coletiva que sequer é vista como uma realidade à parte, como uma linguagem, que, em última instância, ainda é uma mera representação da realidade forjada pelos homens – já devidamente controlada pela iniciativa privada, estatal e religiosa. Como diria o guru do filme: welcome to the Matrix. 

-- Juliano Mion



Quero Ser John Malkovich, de Spike Jonze

O interesse de Spike Jonze pela complexidade da construção de uma identidade nas relações pós-modernas — uma identidade efêmera, que é consumida mais do que construída — mostrou-se lamentavelmente comportado no último filme do diretor, na distopia clean de Ela (Her, 2013).  No seu primeiro filme, aliado ao roteirista Charlie Kaufman, que desde então construiu uma obra profundamente envolvida com um ideal de surrealismo, ele joga a questão da identidade à loucura de um universo sujo. John Cusack descobre uma passagem para controlar o corpo do ator John Malkovich, abrindo o caminho para um relacionamento entre sua esposa (Cameron Diaz) e sua colega de trabalho (Catherine Keener). Há um limite para o quanto quem somos é representado ou deixa de ser representado pelo nosso corpo, e Quero Ser John Malkovich traça uma batalha surrealista com esse limite. A grandeza do filme, no entanto, é não ceder ao deslumbre completo e criar uma história de amor e uma tragédia a partir das regras daquele universo. Uma pérola, ainda mais considerando que nem diretor nem roteirista conseguiram se livrar do próprio deslumbre em nada mais do que fizeram.

-- Cesar Castanha



O Sexto Sentido, de M. Night Shyamalan

O tempo tratou de lapidar uma fama infame para O Sexto Sentido, onde uma surpresa de clímax hoje fala mais alto que o próprio conjunto da obra. Mas o filme que catapultou o indiano M. Night Shyamalan (o novo Hitchcock ou Spielberg, de acordo com empolgados) é ainda mais assombroso que sua (impactante) reviravolta, e isso não apenas no âmbito dos sustos ou na imposição do nervosismo. O Sexto Sentido é em sua completude, um filme sobre solidão, sobre a incomunicação familiar, sobre indivíduos angustiados por algo que lhes falta na vida: a presença de alguém. O suspense pintado pelo diretor (em algumas das cenas mais brilhantes do gênero) é apenas uma capa para a imersão dramática do filme, de personagens melancólicos e ansiosos por aquele contato, aquele toque, aquele diálogo que lhes possa trazer novamente a sociabilidade no lar. É um completo estudo de personagens e também uma das mais emblemáticas construções de clima sobre um suspense, e não à toa, o “I see dead people” permanece como uma referência sobre como uma única linha de fala pode causar tantos calafrios.

-- Rafael W. Oliveira



South Park: Maior, Melhor e Sem Cortes, de Trey Parker

South Park foi a primeira série de animação a bater de frente com a hegemonia de Os Simpsons, a partir de 1997. Mas as duas séries são bem diferentes e South Park definitivamente não é para a família tradicional. O sucesso foi instantâneo, e logo em 1999 os moleques bocudos da minúscula South Park já ganhavam um filme para o cinema. E o melhor: sem ressalvas para conquistar um público mais abrangente. O filme brinca/ironiza/critica/debocha/homenageia muita gente. Até Saddam Hussein e os canadenses, com suas feições boçais (no filme, no filme...) e humor escatológico (que faz imenso sucesso entre a garotada). A verdade é que o estúdio foi bem corajoso em trazer um filme R-rated e fez um sucesso considerável (embora, por razões óbvias, não tenha detonado as bilheterias). O consagrado Deadpool, de quase 20 anos depois, é de fato para crianças perto do que Trey Parker fez com o cenário televisivo àquela época. A série sobrevive muito bem até hoje (embora com desgastes naturais) e este filme de 1999 é mais atual do que nunca, apesar de Hussein já não estar mais entre nós.

-- Alexandre Koball



Um Lugar Chamado Notting Hill, de Roger Michell

O sorriso estampando as capas de revistas, cartazes, outdoors, televisores, telas de cinema, revelam o carisma e beleza de Anna Scott, a atriz-sensação do momento. Em Um Lugar Chamado Notting Hill, essas imagens primeiramente influenciarão a vida dos cidadãos comuns de um bairro londrino, que enxergam na atriz uma passagem para o sonho, um escape para os enredos imaginários de finais felizes e amores eternos. Aquelas fotos, de tão exploradas, escancaradas, idealizadas, acabam por só reforçar o óbvio para os meros mortais: ela é uma mulher inalcançável, um ídolo, um ícone, uma deusa e, no fim, um pedaço de papel inanimado, distante. Mas eis que o filme rompe com essa barreira de realidade e ficção e coloca Anna Scott no caminho de um livreiro comum e anônimo, por quem ela acaba se apaixonando. A partir disso, Notting Hill resgata um cinema à moda antiga, um romance sincero, formado de detalhes, pequenas pérolas, momentos singelos. Óbvio, para nós, quem está ali não é Anna Scott, e sim Julia Roberts, a estrela magna da Hollywood da época, que neste filme mergulha numa brincadeira entre realidade e ficção e decide revelar a mulher por trás da fama, num dos mais doces insights metalinguísticos do cinema moderno. Ao mesmo tempo em que a atriz é enaltecida, ela também se expõe como uma de nós, rompe o próprio verniz e revela ao seu público amado que é tão humana como qualquer um, nesse lindo romance feito sob encomenda para os fãs dessa linda mulher.

-- Heitor Romero

Comentários (24)

Bernardo D.I. Brum | sexta-feira, 15 de Julho de 2016 - 13:14

Audition era minha escolha original, mas como já havia escrito a crítica resolvi falar sobre Dois Córregos.

Francisco Bandeira | sexta-feira, 15 de Julho de 2016 - 14:06

Obrigado Augusto. Fiquei em dúvida entre Kiyoshi e Garrel (O Vento da Noite).

César Barzine | domingo, 11 de Dezembro de 2016 - 15:02

Melhor ano da história do cinema, mas faltou Toy Story 2

Léo Félix | quarta-feira, 10 de Julho de 2019 - 17:02

O mesmo tema, agora em vídeo, na estreia do Cineplayers TV: https://www.cineplayers.com/videos/01-os-filmes-de-1999

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