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Filmografia Comentada - John Carpenter (Parte III)

Não deixem de conferir as duas outras partes do especial.

Parte I

Parte II

 

À Beira da Loucura (1994)

O apocalipse termina com Carpenter fazendo referência à literatura de horror contemporânea com uma história que investe na própria criação de horror, uma investida nos limites até os limites da atmosfera utilizando todo um arsenal de efeitos. O labirinto inescapável de Carpenter dessa vez leva o fim de tudo para dentro da mente humana. “Na boca da loucura”, o investigador John Trent procura o escritor de horror Sutter Crane para acabar se aprofundando em sua obra de forma perturbadora. Procurando a presença fantasma e lendo seu livro, ao melhor estilo dos filmes de investigação, ele tem que identificar-se com aquilo que busca: quando menos percebe, foge de seitas que desconhece, adentra construções que desobedecem o pensamento cartesiano e num piscar de olhos acorda em sonhos dentro de sonhos, perde-se em corrupções maníacas de lugares comuns. Com a cenografia passo a passo tornando o curioso em inusitado e o inusitado no horror, a câmera é o guia de Carpenter dentro de um mundo irracional, onde o mesmo trabalha com sequências com os mais variados ganchos narrativos e propostas estéticas que quase nunca colam, em um coral que suspende realidade e ficção, lógica e irracionalidade, autoria e criação. Com o medo associado principalmente à falta de controle sobre uma situação, a trilogia de Carpenter só poderia ser encerrada mesmo falando sobre a criação sem limites, criando horror sobre horror. Talvez o filme-síntese da carreira de John Carpenter.

 

A Cidade dos Amaldiçoados (1995)

Refilmagem de A Aldeia dos Amaldiçoados (Village of The Damned, 1960) contando com o último papel de Christopher Reeve no cinema, Carpenter mantém a essência do filme e do livro original utilizando o elemento de horror contemporâneo que garantiu a renovação nas mais variadas mídias - no caso, os elementos e indivíduos comuns passando a apresentar perigo em potencial. Crianças criadas através de invasão alienígena - que trazem aí o medo do estranho, desconhecido e forasteiro nos alterando de forma lenta e inexorável - que pretendem tomar o Planeta para si quando alcançarem o pleno desenvolvimento. Carpenter não economiza no gore e no pathos melodramático explorado à exaustão de tomar a ofensiva contra um grupo particular sempre encarando como inofensivo. Na metade dos anos noventa, o resultado da narrativa “sacrifício pela sobrevivência” com o protagonista em dúvida, porém justo, parece um tanto desatualizado após o filme original e outros filmes como Colheita Maldita (Children of The Corn, 1979) e Os Meninos (Quién pede matar un niño, 1976), que impressionaram décadas ao trazer uma abordagem violenta e até mesmo questionadora - no caso, grupos minoritários vítimas de cada crise em escala mundial - guerras, fome, peste - que passam a se voltar contra as figuras tradicionais e hegemônicas.

 

Fuga de Los Angeles (1996)

Diferente da secura dramática do primeiro filme, há um certo senso de diversão em Fuga de Los Angeles - mas da forma que é colocada em tela, a diversão avacalha em nome da ressaca moral e da decepção com as ideologias. Snake, menos cínico e mais anarquista, dança conforme o jogo dos poderosos para frustrá-los em seu terreno. Assim como é o caso de Carpenter, que desestabiliza no campo da linguagem o cinema de entretenimento, filmando Snake jogando basquete, surfando e empreendendo uma série de malabarismos radicais em meio a uma desolada cidade-prisão que apresenta uma variedade de personagens com distintas motivações. O circo degenerado que é o campo de batalha para Snake lutar contra um presidente corrupto e amoral também faz questão de ridicularizar o líder rebelde, um déspota caracterizado à semelhança de Che Guevara. Snake e Carpenter não compram discursos, escolhem o caminho da individualidade, erguem um filme de ação absurdo e pitoresco mais ao estilo do que dominou os anos oitenta, falando com certa seriedade e ressaca moral por meio do avacalho. Enquanto Fuga de New York (Escape from New York, 1981) era uma impressão de uma violenta era corporativista e injusta, a Fuga de Los Angeles é uma imensa alegoria, carnavalesca e ácida, mas talvez com uma nota final ainda mais confrontadora que o encerramento do primeiro.

 

Vampiros de John Carpenter (1998)

De uma forma ou de outra, Carpenter está constantemente homenageando seu mestre Howard Hawks. Algumas vezes, a referência se torna mais explícita e Vampiros está como um desses exemplos proeminentes. Dessa vez, não há a surpresa de uma ameaça desconhecida que pouco a pouco passa a se conhecer: no topo da equipe de caçadores de Vampiros, James Woods com um arquetípico visual motoqueiro encarna a resistência da civilização frente à sede de sangue e dominação dos vampiros - da mesma forma que John Wayne e um grupo reduzido resistiram aos avanços de foras da lei numa pequena cidade em Onde Começa o Inferno (Rio Bravo, 1959). Carpenter dirige um filme todo pelo confronto, opondo o poderio de fogo e os dons sobrenaturais, a resolução de um soldado contra uma sede de sangue fanática, brincando com a tensão de cerco se fechado, esticando o tempo de situações especialmente perigosas, valorizando o sacrifício individual de uma minoria esfarrapada contra uma unidade orgulhosa de sua violência. A unidade monstruosa dos vampiros é a maior ameaça à diversidade frágil do grupo, erguendo uma espécie de “faroeste gótico”, onde horror e repulsa são chaves trabalhadas em pé de importância igual com a violência e a tensão. Vampiros, por assim dizer, é a obra mais “bruta” de John Carpenter, onde suas ferramentas favoritas para se criar a atmosfera de ameaça ganham a oportunidade de uma história simples, de mote quase simplório, mas com uma condução rústica, seca e determinada em seu único propósito.

 

Fantasmas de Marte (2001)

Utilizando de uma narrativa em flashback para cavar uma paisagem inóspita de um antigo mal desconhecido - um mecanismo narrativo do gênero fantástico que remonta a Bram Stoker e perpassa por Lovecraft, o primeiro filme de Carpenter do novo milênio parece completar uma trilogia de “domínio e resistência” ao lado de Assalto à 13ª DP (Assault on Precinct 13, 1976) e Vampiros de John Carpenter. Marte é um território a ser conquistado ou retomado, novamente com a herança do western gritando forte no deserto vermelho, com as décadas transformando as representações - os pálidos fantasmas se põem contra os uniformes de couro negro de uma equipe marcada pela diversidade - mulheres, homens, negros e brancos são ameaçados pelas arcaicas armas brancas e armaduras. Com a narrativa oscilando entre a ameaça física e o desmantelamento da ordem social, as batalhas que Carpenter filma passam longe de serem épicas; são claustrofóbicas, confusas e desesperadoras em sua brutalidade. Eternamente refinando o conto do cerco, Carpenter atravessa as décadas nem sempre arrebatando o público - este é outro filme que costuma ser lembrado como um fracasso de bilheteria - mas pragmático a um projeto estético pessoal em um cinema que encontra novos cenários, contextos e iconografias, mas sempre servindo ao mesmo propósito.

 

Mestres do Horror: Pesadelo Mortal (2005)

Antes da fama no seriado The Walking Dead interpretando o violento e introspectivo Daryl Dixon, Norman Reedus foi protagonista do episódio “Cigarette Burns”, dirigido por John Carpenter para a série “Mestres do Terror”, como um projecionista com um passado de uso de drogas e a perda de uma namorada que se torna obsessivo em encontrar um filme perdido, um fictício filme francês intitulado “O Fim Absoluto do Mundo”, cuja única exibição fez todos os espectadores cometerem suicídio. A temática metalinguística mais cedo ou mais tarde influi na própria condução narrativa, com a mente conturbada do protagonista perdida entre seu passado e a missão que é encarregado fazendo história que protagoniza “saltar”, sinalizado pela “queimadura de cigarro” que as películas carregam para denotar a mudança de rolo. Com o ritual do cinema incorporado, somos jogados em sua narrativa com quase nenhuma preparação, pulando de cena perturbadora para a próxima, com as lacunas e pontos de interrogação agregados como parte de uma atmosfera onde Carpenter, pouco a pouco, mina e expulsa a lógica para, em uma hora, alcançar um clímax que literalmente casa cinema e gore quando o projecionista encontra o que estava procurando: o monstro do final, e seu poder de ser a síntese de nossos medos, repulsas e inseguranças, muito em semelhança com “À Beira da Loucura”, com a diferença do detonador: não o leitor (espectador) ou o autor (cineasta), mas a figura do projecionista, o que nos exibe o filme, o mediador lutando pela exposição do nosso lado feio e escuro e lutando contra seu domínio.

 

Mestres do Terror: Pró-Vida (2006)

Toque de ironia de Carpenter, “Pró-Vida” faz referência a frequentes notícias de que médicos que realizam abortos são, há décadas, vítimas de ameaças de morte, assassinatos e sequestros por partidários extremistas anti-aborto. No caso, um homem tomado por sua fé religiosa invade uma clínica armado até os dentes visando impedir que sua filha termine a gestação… Sem saber da origem demoníaca do neto. Quase uma brincadeira com suas tradicionais histórias de cerco, Carpenter opõe várias ideias, vários grupos e vários conflitos em menos de uma hora em uma maré de sequências ultraviolentas que não demoram a chegar e entregar um final igualmente melodramático e cômico, com o diretor lançando mão da simplificação brutal de conflitos com um tom ácido que mesmo sendo tudo levado no tom de brincadeira e com um certo senso de espetáculo, não deixa de ser uma brincadeira espinhosa e provocativa.

 

Aterrorizada (2010)

Há a figura do guardião nos filmes de Carpenter, aquele que tenta deter a ameaça, ao melhor estilo “Onde Começa o Inferno”; e há os filmes sobre confinamento, como o eram Dark Star (idem, 1974), Fuga de Nova York, “O Enigma de Outro Mundo” e “O Príncipe das Sombras”, onde a sobrevivência não significa resistir, mas escapar; uma das grandes ameaças é o espaço limitado que o adversário sabe como utilizar ao bel-prazer através de ataques de oportunidade. Se há algo para resistir é a integridade mental de quem protagoniza: a tentativa de Kristen de escapar das barreiras físicas e mentais que se interpõem entre ela e a liberdade são o espaço para as set-pieces de Carpenter, mesclando suas câmeras estáticas e as composições de luz e sombra para criar um conjunto muito criticado por ser “o filme de hospício de sempre” mas que pode-se também dizer que seu retorno à tela grande é o Carpenter de sempre: longe do conceito de terror absoluto de Enigma de Outro Mundo e Halloween e sem carregar a iconografia marcante de um Eles Vivem ou Christine, é identificado no espírito de expôr as mazelas do indivíduo por algo maior do que ele (Estados, instituições, entidades, tradições) materializado em conflito vivo frente às câmeras. Com suas aposta de conclusão em um plot twist, pode-se acabar perdendo de vista outras leituras possíveis - como o cerne que move as obras de Carpenter: a mediação de economia formal e o desenrolar progressivo das interações com desconhecido. Misé-en-scene como a maior arma de um artesão rebelde.

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Parte I

Parte II

Comentários (11)

Eduardo da Conceição | segunda-feira, 11 de Maio de 2015 - 23:17

"À Beira da Loucura" é, possivelmente, a melhor obra dele, sem mais. Deu até vontade de rever.

Polastri | segunda-feira, 11 de Maio de 2015 - 23:41

Fantasmas de Marte e Cigarette Burns são fantásticos, e Aterrorizada é um filme comum mas boa diversão. Ainda não vi nada ruim do Carpenter, tem um domínio narrativo enorme.

Ted Rafael Araujo Nogueira | quarta-feira, 13 de Maio de 2015 - 10:13

Tenho preparado um comentário sobre Fuga de Los Angeles faz um tempinho, tava quase terminando e me deparei com essas análises. =]

Fuga de Los Angeles é um dos maiores sarros que já vi. Um avacalho não somente aos anseios do American Way of Life levado ao limite do conservadorismo mas um sarro estonteante da arte mainstream como um todo americana na ridicularição da cultura seja ela a de massa mastigada pela mídia ou pela intelectualóide de sempre. Uma putaria sem tamanho com Snake como válvula de escape escrota de todo um discurso anárquico que visa a desconstrução dos mitos americanos ufanistóides atrvés da esculhambação. Uma obra prima sem tamanho.

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