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Filmografia Comentada - Pedro Almodóvar

Pepi, Luci, Bom e Outras Garotas da Turma (1980), por Guilherme Bakunin

Praticamente o primeiro filme de Almodóvar, filmado com suadas 20 mil libras, um marco importante dentro daquilo que Almodóvar representava culturalmente para a jovem Espanha na transição entre os anos 1970 e 1980; o diretor, à época, era um grande ícone da cultura pervertida underground espanhola e, com a ajuda de amigos, conseguiu angariar fundos para filmar e representar esse universo. Um dia Pepi recebe a visita de um vizinho policial que pretende prendê-la por cultivar maconha; Pepi propõe trocar sua prisão por uma “rapidinha”, mas desde que seja por trás, pois ela ainda é uma virgem; o policial ignora seu pedido, estuprando-a. A partir daí, o desejo por vingança de Pepi desencadeia uma série de situações de teor muito mais de manifestação de uma cultura/sub-cultura do que propriamente narrativo. O filme se desenrola de maneira bagunçada, propositalmente avacalhada e libertária, pois parece interessar muito mais ao estreante diretor espanhol trabalhar com as ideias de choque de valor através da descortinação de diversos sujeitos e perversões (e muito do choque provém da isenção de julgamento praticada por Almodóvar). É, talvez, muito mais um acontecimento do que um filme pronto, mas que antecipa grandes qualidades de um cinema que seria, anos mais tarde, sólido, potente e mundialmente conhecido.

 

Labirinto de Paixões (1982), por Cesar Castanha

Se já não conhecêssemos o homem por trás da piada, o humor de Labirinto de Paixões poderia até ter soado involuntário. Pedro Almodóvar, o rei do camp, brinca com questões como estupro, incesto, ninfomania e homossexualidade como se fossem questões corriqueiras para todos os cidadãos da Madrid de 1982, porque talvez fossem.

A história se constrói ao redor de dezenas de personagens entrelaçados pelas suas relações sexuais. Sexilia (Cecilia Roth) é uma jovem ninfomaníaca com fotofobia que se apaixona por Riza Niro (Imanol Arias), um príncipe islâmico exilado na Espanha. Riza, por sua vez, tem um caso com Sadec (Antônio Bandeiras, antes da fama), um terrorista com olfato aguçado cuja missão é justamente sequestrar o tal príncipe.

Começando pelo nome da protagonista, Almodóvar está sempre no controle de todos os seus exageros e absurdos tirando a marginalidade do lugar de bizarrice e colocando-a como parte da cidade, viva e instigante.

 

Maus Hábitos (1983), por Francisco Carbone

Numa sociedade tão arraigada de preconceitos religiosos e sexuais quanto a espanhola do início dos anos 80, Pedro Almodóvar partiu de uma premissa original para mergulhar na aventura do único longa de sua carreira onde não foi o produtor; traumatizado, isso jamais se repetiria. Mas mesmo com todas as chances contra, ainda assim o enfant-terrible espanhol conseguiu contar uma trama que unisse exatamente esses dois aspectos tão polêmicos, e realizou um filme anárquico e extravagante sobre a testemunha de um crime cometido pela máfia que vai parar escondida num convento onde suas freiras já foram prostitutas, viciadas ou apenas desgarradas emocionalmente, ainda hoje presas a seus antigos vícios. Na caretice dos anos 80, o filme caiu como uma bomba; hoje, a deliciosa história de amor entre uma cantora de cabaré e uma madre superiora tem a cara da juventude de seu realizador, em todos os seus defeitos (a crueza técnica, o exagero por ora ou outra forçado) e também em suas qualidades (o frescor de sua narrativa, seu elenco entregue à diversão).

 

Que Fiz Eu Para Merecer Isto? (1984), por Cesar Castanha

O Que Fiz Eu para Merecer Isso? herda muito do neorrealismo italiano. A representação da classe operária e a fidelidade narrativa e estética àquele universo são evidências dessa herança. É bastante típico de Almodóvar reverter a lógica do neorrealismo italiano para uma personagem feminina (na minha opinião, a sua grande heroína). E, quando na escola "original" todo misticismo era diminuído ou encarado com desconfiança, neste filme é abraçado. Realismo mágico? Talvez. Almodóvar é difícil de encaixar.

 

Matador (1986), por Guilherme Bakunin

Matador mostra um Almodóvar amadurecido, que começa a circular mais pelos temas e valores que cercam, de maneira geral, sua filmografia. Diego Montez é um toureiro aposentado por invalidez que dá aulas para Angel, um jovem supostamente homossexual marcado pela criação fanaticamente religiosa de sua mãe que, confrontado pelo seu professor sobre ser gay ou não, resolve, como forma de provar sua virilidade, estuprar a namorada de seu tutor; envolve-se também na história María Cardenal, uma advogada que possui uma perversão particular. Os filmes de Almodóvar são geralmente marcados por histórias de trauma, desejo e obsessão, ao mesmo tempo em que revelam personalidades marginalizadas pelo meio social que vê a sexualidade/erotismo com maus olhos. Em Matador, todas essas questões estão fervilhantes, mas há um aspecto especialmente interessante no que diz respeito à relação intrínseca criada entre sexo e violência, não como forma de elaborar um comentário puritano a respeito do sexo, mas como forma procurar enxergar as mais obscuras frestas presentes do espectro da sexualidade humana. O trabalho de Almodóvar é bastante motivado por essa procura, que se alia à habilidade que o diretor espanhol tem de contar histórias que não são apenas, a sua maneira, universais, mas que conseguem ao mesmo tempo centralizarem-se em sua própria cultura e contemporaneidade, de uma maneira que poucos diretores europeus que foram tão rapidamente internacionalizados como Almodóvar conseguiram.

 

A Lei do Desejo (1987), por Régis Trigo

A Lei do Desejo foi o sexto longa-metragem de Pedro Almodóvar, quando ele ainda buscava um estilo próprio, estético e narrativo. Aqui estão presentes os temas recorrentes da sua obra, como a homossexualidade masculina, a troca de sexos, a religião e o melodrama, tudo isso embalado em uma trama assumidamente rocambolesca (um pouco até demais, mesmo para os padrões já exagerados do diretor), e que seriam mais bem trabalhados nos filmes realizados a partir da metade dos anos 1990 (considero A Flor do Meu Segredo o grande ponto de virada da carreira do diretor). Ao contrário das suas obras mais maduras, A Lei do Desejo peca pela falta de foco (ora a narrativa se concentra no triângulo amoroso formado por Pablo, Antonio e Juan, ora no passado misterioso de Tina); por personagens mal desenvolvidos, sem motivações definidas, e atitudes pra lá de incoerentes (Antonio diz que não transa com homens, mas sua obsessão com Pablo ao longo do filme o desmente por completo); por uma mise en scène pouco elaborada; e por convenientes alternâncias de roteiro (como a perda de memória de Pablo). De todo o modo, A Lei do Desejo, uma espécie de porta de entrada para os temas que seriam tratados de forma cômica em Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos, não tem qualquer pudor de falar e mostrar o sexo (sempre entre dois homens), de tratar abertamente do incesto e da transexualidade (ainda que um pouco descontextualizado da trama central), e de fazer desta salada, por mais ridícula e over-the-top que pareça em alguns momentos, como algo agradável de se ver e um dos melhores trabalhos da fase inicial do cineasta.

 

Mulheres à Beira de Um Ataque de Nervos (1988), por Cesar Castanha

O gosto de Almodóvar pelo melodrama existe, é real e palpável. Só que ele não parece estar satisfeito com o que já foi feito com o gênero e, pela primeira de várias vezes na sua carreira, o subverte. Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos abraça o ridículo do melodrama sem abandoná-lo. As questões dos personagens são reais, mas ainda assim podemos rir delas. É o nascimento de Almodóvar como gênero: pronto, maduro. É lindo como ele apresenta a sua protagonista primeiro pelo seu interesse amoroso e vai se voltando pra ela no decorrer do filme. O resultado é uma obra-prima leve. Belo sobre a "fossa". Uma comédia sobre a raiva, o ciúme e a dor do abandono.

 

Ata-me (1990), por Marcelo Leme

A relação entre sequestrado e sequestrador nunca foi tão bem retratada pelo cinema. Há alguns anos ouvi alguém afirmar que se quiséssemos entender o que é o desejo, deveríamos assistir aos filmes de Pedro Almodóvar. A ousadia de sua filmografia garante tal designação. Ata-me é mais um dos expoentes de seu icônico cinema. Quantos cineastas conseguem ter uma identidade própria tão demarcada quanto ele? O filme traz o sequestro por uma paixão. Um homem só aceitar soltar uma mulher quando ela se apaixonar por ele. Parece impossível, inviável, um absurdo. A coisa toda toma forma nas mãos talentosas do diretor e o romance se exalta nas minúcias. Não é pra ser moral ou ético, talvez transgressor. Talvez seja feito apenas para provocar e não ser levado a sério. Fora de um hospital psiquiátrico, um homem faz de sua musa uma refém, refém de um amor que ambiciona, mas que não tem controle. Então acompanhamos uma busca pessoal por controle. Este é apenas idealizado. À medida que a narrativa avança, emergimos na excentricidade característica do espanhol, e o que outrora era idealização converte-se em disparates. É seguramente uma das obras mais complexas e divertidas da carreira de Almodóvar, ao passo que também é uma de suas composições mais inusitadas com a dupla Victoria Abril e Antonio Banderas igualmente submersas na loucura.

 

De Salto Alto (1991), por Heitor Romero

Embora esteja em A Flor do Meu Segredo o momento para o amadurecimento de Almodóvar nos anos 1990, os primeiros indícios dessa lapidação pela qual seu cinema passaria se encontram em De Salto Alto, um filme que ainda mantém a identidade visual berrante e o conteúdo cômico em alta, mas já pendendo para uma atenção mais intimista para com os personagens e seus dramas. É o momento em que ele percebe e assume esse talento de se aprofundar nas nuances e variáveis possíveis dentro do universo particular de um personagem e deixa de apostar nas separações categóricas e folhetinescas de mocinhos e vilões. Aqui o lado humano prevalece e o Almodóvar observador, sensível, e paternal se sobressai sobre o Almodóvar sacana e anárquico, mesmo tendo como pano de fundo uma trama melodramática e histérica. Em comparação com seus filmes atuais, em que há um equilíbrio mais orgânico entre esses dois pólos de seu cinema, pode parecer pouco, mas até então foi seu trabalho mais maduro e dramaturgicamente forte. Os anos deixaram De Salto Alto apagado em sua filmografia, mas isso não o faz menos essencial e digno de nota para sua evolução como cineasta.

 

Kika (1993), por Marcelo Leme

Dono de personagens verdadeiramente marcantes, Pedro Almodóvar conseguiu trabalhar personagens icônicos que ganharam espaço no imaginário popular. Em Kika, a ótima Victoria Abril deu vida a uma das elaborações mais inusitadas do diretor, a estrambólica Andrea Caracortada. E ela é apenas um detalhe desse seu filme, um dos menores e menos populares de sua carreira, mas alucinadamente divertido tal como a maioria são. Kika é um filme esquisito, com um humor burlesco e situações verdadeiramente bizarras. Conta a história de uma maquiadora contratada para maquiar um defunto e, após descobrir que este está vivo, apaixona-se por ele. O humor sintetiza uma trama de teor investigativo, o que ocasiona reviravoltas e mantém um clima misterioso num ritmo aleatório. O dinamismo e alternância de situações – tais oscilações propositivas compreendem deste o texto até a iluminação – realizadas pelo diretor se mostra efetivo aqui, mas o roteiro confuso, embora não careça nada de originalidade, se perde no entusiasmo de seu realizador, tornando-se demasiado pitoresco para suas desejosas pretensões narrativas.

 

A Flor do Meu Segredo (1995), por Heitor Romero

Filme limítrofe da carreira de Almodóvar, A Flor do Meu Segredo divide sua fase kirsch do seu momento de amadurecimento e sofisticação, que viria a ser definitivamente perpetuado em Tudo Sobre Minha Mãe. Ao deixar de lado seus exageros coloridos e gritantes, ele se aprofunda em uma reavaliação de sua figura como artista, usando sua protagonista como alter-ego que se vê em uma crise de identidade ao se transformar de fato no pseudônimo que criou para si. Deixa de ser a fuga física do homem que deseja possuir um corpo feminino para se tornar uma fuga emocional e artística, na busca por uma identidade que só se revela genuína e verdadeira quando na voz de um heterônomo. A Flor do Meu Segredo é sobre o artista que se esconde atrás de uma máscara, não por questão profissional, mas porque se ocultar atrás de uma ficção passa a ser sua realidade, e adquirir uma nova identidade possibilita, de alguma forma, passar a ser quem realmente se é no íntimo.

 

Carne Trêmula (1997), por Cesar Castanha

A última noite da Ditadura Franquista passa com as ruas vazias, ainda apavoradas. É então que nasce nosso herói, talvez na cena mais bonita da carreira de Almodóvar. A Espanha precisa de tempo para superar o medo e a opressão. Carne Trêmula é um muito tímido e singelo filme político, quando se revela é que se percebe a força do que diz. Lindo.

 

Tudo Sobre Minha Mãe (1999), por Marcelo Leme

Em Tudo sobre minha mãe, Almodóvar se reinventa com voltas e reviravoltas, contornos e descontornos, numa obra sensível sobre a perda de um filho. Jamais corriqueira, o que a narrativa oferece é uma viagem pessoal intrínseca naturalmente extravagante num terreno intimista de seu diretor. Há muito de si em suas obras, especialmente nessa aqui. É uma novela cujo tom melodramático – por vezes acentuado descontentando alguns de seus espectadores – exerce função para a imagem cênica tão bem cuidada, geralmente deprimente, mas dotada de imensa ternura. É também um filme de reconciliação pessoal, de lembranças envolventes que atenuam o drama do roteiro, levando a ótica de representações como cerne, justificando o estilo e contextualização teatral. O teatro é objeto de lembrança, lembrança da noite de tormenta em que fora exibido "Um Bonde Chamado Desejo". Um dos desejos de seu filho escritor era assistir à peça ao seu lado como um presente de aniversário. Tal como na maior parte de sua filmografia, o papel feminino é enfatizado, posto em voga na performance afetiva de Cecilia Roth, que caminha por becos como se confrontasse sombras, numa busca pelo pai de seu filho que trabalha como travesti em Barcelona. Na suavidade amistosa do roteiro, este é um dos mais célebres filmes da carreira do cineasta.

 

Fale com Ela (2002), por Heitor Romero

Como dito pelo próprio Almodóvar, Fale com Ela “é sobre temas muito básicos do ser humano: solidão e comunicação”. Acima disso, há ainda os constantes conflitos amorosos sempre presentes em seus filmes, fora a relação pactual entre o sexo e o caos que sempre pontua seus trabalhos. A diferença é a opção de colocar em evidência o ponto de vista masculino sobre esses temas, embora não haja exatamente limites de gênero quando assistimos ao quadrado amoroso de Benigno, Marco, Alicia e Lydia, em que os personagens parecem assexuados (seja Benigno e suas habilidades femininas, sua delicadeza nata e sua inocência afeminada, seja Marco e sua incapacidade de conter as lágrimas quando diante de qualquer coisa minimamente bela, ou mesmo Lydia e sua praticidade emocional e sua profissão tipicamente masculina). Quebrando barreiras de gêneros, Almodóvar cria um dos mais belos filmes sobre o amor, a solidão e o poder da comunicação, em que os três sentimentos são colocados à prova quando os personagens não podem fazer nada além de conversar com suas parceiras moribundas. O carinho, respeito e cuidado de sua câmera em filmar Lygia e Alicia em coma, fora o curta-metragem Amante Minguante, mudo e em preto e branco, sobre o desejo nato masculino de se aventurar sobre o corpo feminino, colocam Fale com Ela na posição de melhor filme de Almodóvar, um dos maiores gênios do cinema contemporâneo.

Texto original do especial Cineplayers: filmes de 2002

 

Má Educação (2004), por Heitor Romero

É costume no cinema de Almodóvar a inversão da ordem dos fatores estruturais de começo e fim. Em vários de seus filmes, o clímax se dá logo no início, e o que resta são as conseqüências desse clímax castigando os personagens, como no assassinato de Volver, no atropelamento de Tudo Sobre Minha Mãe e no tiro de Carne Trêmula. Isso faz de seus filmes uma coleção de reflexões sobre o efeito dominó em que podem se desdobrar as decisões do ser humano, em especial aquelas tomadas em um estopim passional. Em Má Educação, essa característica de seu cinema é potencializada ao máximo, pois trata de uma história sobre o acerto de contas com o passado. Desta vez, ele embaralha os tempos e as identidades dos personagens, mesclando passado, presente e futuro sem prévio aviso e com isso montando uma teia complexa de relações de amor e ódio. Essa brincadeira com as possibilidades espaciais, temporais e estruturais do cinema (inclusive nas belíssimas referências aos clássicos hollywoodianos) rende um roteiro brilhante, que jamais se perde no vai e vem dos anos e sorrateiramente revela os segredos ocultos nos corações dos personagens, em um poderoso noir tingido de vermelho. Não mais contente em simplesmente inverter a ordem de ação e reação, ele aqui se aventura em embaralhar a constante em uma linha do tempo em que tudo se reflete como uma conseqüência trágica que ecoa e retumba viva pelo mais cruel e justo dos deuses da natureza.

 

Volver (2006), por Marcelo Leme

Volver é um encanto visual. Também é um encanto por Penélope Cruz, que está deslumbrante. É um dos filmes mais belos do cineasta Pedro Almodóvar. Há uma rima do visual com os personagens que lhe transforma numa deliciosa experiência de contemplação de imagem, estando os vários personagens inseridos num clima melancólico adornado pelo caráter plástico que contempla especialmente a cor vermelha. Fúnebre, o cemitério de La Manchaé uma locação, pessoas vão até lá limpar os túmulos de seus entes. O filme trata da vida e da morte a partir de um acerto de contas fantasmagórico que simboliza o passado que constantemente se faz presente. Este nunca abandona. O filme também traz aspectos do incesto e o delineia comicamente. O título sugere ‘voltar’. Numa primeira hipótese óbvia, diz respeito ao que a trama propõe a partir da morte e de seu retorno indagativo; em outra instância, essa mais teórica do ponto de vista da filmografia, esse é um retorno do diretor ao estilo que lhe consagrou nos anos 90. Novamente as mulheres sobressaem e os homens aparecem como figuras desprezíveis, ainda que necessárias. Volver fala de gente, de crença e evidencia um terceiro ‘volver’, nesse caso um retorno até nossas próprias escolhas e o quanto estamos bancando-as. Obra de fácil identificação e de uma afetuosidade fascinante.

 

Abraços Partidos (2009), por Heitor Romero

É o cineasta cego, que apalpa a tela para sentir sua imagem, sua criação, como se acariciasse uma textura, com base apenas no que está ouvindo. É o produtor mesquinho, que se choca com o que assiste na tela grande, mas que, agoniado, não consegue ouvir o que está sendo dito. É o aspirante a diretor, voyeur, que persegue seus alvos na ânsia de montar seu primeiro filme, mas sem a malícia da profissão. É a atriz, glamorosa, que é Audrey, que é Marilyn, mas que nunca consegue ser ela mesma. Abraços Partidos é Almodóvar se chocando com todos os recursos básicos do cinema, filmando filmes dentro de filmes, dentro de outros filmes, berrante como sempre, alardeando seu amor pela arte, usando sua câmera como cúmplice sofrida de seus personagens. Nunca o cineasta foi tão fundo, nunca amou tanto, nunca abusou tanto, nunca se excedeu tanto em tudo que se prestou. Uma das declarações de amor mais tristes, dramáticas, de artistas em conflito com a imagem, ou o som, ou a luz, ou mesmo a câmera, mas ao mesmo tempo tão irremediavelmente reféns de tudo isso. Nessa de “mutilar” o cinema, ora amputando o som, ora a imagem, ora a luz, ele declara seu ódio e seu amor ao mesmo tempo, e nos encanta mais uma vez com suas cores vivas mergulhadas na escuridão da alma de seus personagens.

Texto original do especial 10 Anos Cineplayers - Filmes de 2009

 

A Pele que Habito (2011), por Bernardo Brum

A Pele que Habito entra fundo no conceito de identidade de gênero como mola principal de uma história tipicamente a la Frankenstein: neste terror psicológico, temos o cientista perturbado passando por cima da ética, um "construto" vítima de uma cirurgia forçada de mudança de sexo à força que em sua perturbação acaba por se revelar também um algoz; e uma galeria de monstros humanos insensíveis dominados por desejo e carentes de qualquer empatia. Esse conto de terror dá conta de violência íntima, de uma resignificação à força, violência essa para Almodóvar ainda mais massacrante que a física. Com tons hitchcockianos - o protagonista vítima porém pecador, o medo da individualidade sacrificada, o sangue como elemento redentor porém culpado, o elemento de voyeurismo que dialoga com Os Olhos Sem Rosto de Franju... Almodóvar retorna mais uma vez ao melodrama, mas dessa vez atende ao suspense clássico: as obsessões de escancarar a perversidade da moralidade da classe burguesa torna-se ainda mais psicologizante ao falar sobre sexo e identidade de maneira explícita, detalhada e, claro, ritualista. Rendido a mestres do suspense, é escancarado e perturbador como jamais foi, tirando do miolo central do romance Tarântula um filme mais contemporâneo o possível para nossas questões. Violência e foro íntimo é sempre uma salada indigesta, e o suspense, a via perfeita para provocar e perturbar.

 

Os Amantes Passageiros (2013), por Heitor Romero

Curiosa, anárquica e performática alegoria de Almodóvar para a atual crise financeira e social da Espanha. Um avião que voa, voa e voa sem chegar a lugar nenhum, próximo de uma possível colisão (o futuro imediato da crise); a classe econômica dopada como representação da impotência do cidadão de classe média diante do desdém do Governo aos apelos do povo, e os pilotos que escondem dos passageiros a verdadeira situação, como ataque direto de Almodóvar à política praticamente ditatorial de Mariano Rajoy. Não deixa de ser uma crítica atualíssima, necessária e corajosa, mas muito enfraquecida por um filme que não se leva a sério a ponto de transmitir confiança em sua mensagem de revolta. Os Amantes Passageiros pode não seu melhor trabalho recente (na verdade, é o seu filme mais fraco desde Kika), mas com certeza traz a força de um cinema atualmente único, e ainda carrega consigo um grito de revolta, a favor de um país que depois de quase quatro décadas de democracia, começa a temer novamente diante da sombra de um novo governo ditatorial se impondo. Mas a mensagem de Almodóvar, que dá voz ao seu povo, além de provocativa, é muito clara: we will survive.

Trecho editado da crítica completa para o filme

Comentários (10)

Gustavo Hackaq | quinta-feira, 30 de Outubro de 2014 - 15:41

Eu tava ontem mesmo vendo a filmografia dele e marcando os que me falta. Rei da Espanha.

Liliane Coelho | segunda-feira, 03 de Novembro de 2014 - 11:13

E é produtor do fantástico "Relatos Selvagens". Excelente filme. Darín + Almodóvar = OP.

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