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Filmografia Comentada - Takeshi Kitano

Takeshi Kitano é, literalmente, um artista diferente. Muitos dizem ser o legítimo sucessor dos grandes cineastas japoneses das décadas de quarenta e cinquenta. Cria do cenário stand-up do Japão, onde atua-se em duplas com um fazendo o “escada” e o outro o piadista, sua apresentação na televisão japonesa como Beat Kiyoshi e Beat Takeshi no final dos anos setenta fez sucesso internacional com humor negro e grosseiro que lhe valeu problemas com censura em algumas transmissoras. Logo após, na metade dos anos oitenta passaria a comandar o game show Takeshi's Castle, com o comediante interpretando um conde dono de um castelo que estipula difíceis desafios físicos para quem quer fazer parte de seu exército voluntário – como pular e desviar obstáculos, andar sobre superfícies instáveis, jogos de reflexo entre outras dezenas de desafios (muito copiados por Silvio Santos e Faustão em seus programas dominicais) que junto com um elenco de comediantes tornou o programa tremendamente cultuado e influente ao redor do mundo.

Mas Beat Takeshi não parou por aí. Ainda na década de 80, atuou em Furyo – Em Nome da Honra (Merry Christmas, Mr. Lawrence, 1983), filme de Nagisa Oshima com David Bowie em papel de destaque. Mas apesar de atuar em um dos filmes de um dos luminares da nouvelle vague japonesa, os papéis posteriores continuavam contratando-o por sua verve cômica. Mas Takeshi queria mais. E justamente no final da década surgiria uma oportunidade para uma guinada de noventa graus que chocaria os fãs daquela persona cômica – e apresentaria ao mundo o cinema indefinível de Takeshi Kitano.

 

Violent Cop (1989)

Tudo começou quando o diretor Kenji Fukasaku adoeceu e o então novato no cinema Kitano recebeu a oportunidade dirigir seu primeiro filme. O resultado foi que o primeiro filme dirigido pelo autor é praticamente a antítese do filme policial americano típico. Não há qualquer pathos: o protagonista interpretado pelo diretor mal é um personagem sob a ótica da construção narrativa clássica. Na contramão do citado filme policial tradicional, Violent Cop é amoralmente violento. A brutalidade niilista do filme tira qualquer legitimação ou revisionismo de sua análise. O número de eventos é reduzido e concentram-se nas situações, com uma cinematografia contrastada e “maltratada” - a secura emocional explode em um filme tremendamente gráfico, onde evita-se a decupagem tradicional, inaugurando o estilo de Kitano de apostar na composição de quadro, evitando tanto a excessiva movimentação de câmera quanto de personagens, concentrando na repetição estilística, de uma austeridade quase ritualística de sessões de violência. Sequências em particular dão destaque ao som como índice de violência, onde a sugestão é tornada revelatória; os pontuais usos de câmera lenta aprofundam ainda mais o espaço-tempo lento e claustrofóbico. Ainda hoje, vinte e cinco anos depois, o filme do japonês é uma das abordagens mais singulares de violência, retratada como feia, imprevisível e distante, sem qualquer emoção.

 

Boiling Point (1990)

Apesar de não ser dos seus projetos mais apreciados, Boiling Point é o primeiro passo de Kitano a caminho de um maior controle sobre sua obra: acumulando as funções de roteirista, diretor, ator e montador, aqui é aprofundado desenho dramático que os personagens do diretor enfrentam: toda alta inspiração e bom sentimento, o que tange à introspecção, é massacrado pelo exterior. O cotidiano se choca com o marginal  - e todos os seus personagens estão propensos tanto a momentos de profunda intimidade revelados pelos demorados planos contemplativos quanto a surtos de violência, representados pela violência novamente gráfica, suja e anacrônica, com picos de humor negro que tornam seus personagens – dois homens de um time de beisebol que querem a todo custo se vingar de um yakuza, nem que para isso tenham que se aliar a um outro criminoso - ainda mais tragicômicos, figuras ao mesmo tempo patéticas e empáticas. É aqui que começa a ficar explícita a questão do paradoxo no cinema de Beat Takeshi – seus personagens são naturalmente indefiníveis, irreconhecíveis, fora de qualquer paradigma. Trabalhando fora do normativo e das proposições maniqueístas que os modos tradicionais de narrar oferecem, seus filmes sem curva dramática definida, com atuações pouco revelatórias, deslocam-se dos simples contextos e psicologismos e entram de vez no regime da contemplação, do embate interior/exterior sendo realizado de maneira pouco óbvia e pouco didática. Como acontece no legítimo cinema contemporâneo, não há nada mais natural do que o estranhamento.

 

O Mar Mais Silencioso Daquele Verão (1991)

De início, a trama do terceiro filme de Kitano já mostra a sua sede em arriscar para fora dos terrenos óbvios: um homem surdo deseja aprender a surfar, apaixonado por uma mulher também surda. Logo por esse contexto são limados muitos diálogos – e a maneira de apresentar e criar empatia é fundamentalmente visual. As dificuldades, os momentos cômicos, o demorado e sofrido aprimoramento no esporte; as informações que temos são aquelas possíveis de se experienciar no campo diegético recortado pelo quadro: filmando atividades prosaicas como parte de um grande quadro de introspecção, onde o protagonista fala pelas coloridas roupas que usa, fala pelos longos momentos onde senta de costas para a câmera, de frente para o mar, ou seja, recorte e ruído – para podermos buscar ali o ideal do naturalismo burguês de alcançar a alma de um personagem através dos mecanismos que nos são oferecidos. A oferta de Kitano é o realismo revelatório: a pouca intervenção da montagem, os planos demorados, a utilização constante do silêncio visando criar o universo particular de alguém impossibilitado a falar ou ouvir. O fascínio de Kitano pela força da imagem sobre texto, atuação e a dramaturgia teatral tradicional desmonta o ilusionismo típico da imagem do regime do cinema narrativo e exibe uma temporalidade pragmática, exigindo do espectador ou abandonar o filme ou embarcar em uma viagem onde só o pequeno gesto revela. O primeiro dos filmes mais sutis de Takeshi, tratados sobre o amor (por alguém ou por alguma ideia) que tiram a abordagem violenta de jogo para focar-se quase que exclusivamente no íntimo que se revela no cotidiano e a enorme vontade de transgressão de seus personagens de suas condições atuais. Nisso, O Mar Mais Silencioso Daquele Verão identifica-se com seus personagens, surgindo como uma verdadeira tour-de-force, pregando por uma linguagem expressiva do cinema que fale em condições ulteriores à tradições narrativas como o teatro burguês, psicologismo, a estrutura de romance – uma arte a ser apreciada de forma sensória, apenas com imagens, ruído, tempo e espaço como forças-motrizes de compreensão. Um exercício de busca por uma nova sensibilidade.

 

Adrenalina Máxima (1993)

O quarto filme de Kitano recebeu o título original de “Sonatine”, a pequena sonata, que para ele representava o amadurecimento do seu cinema – e aqui ele apresenta a tônica multitonal de seu cinema de maneira brutalmente contrastante – a  trilha introspectiva e minimalista de Joe Hisaishi em sua primeira parceria com Kitano potencializa as imagens de um filme que traz à tona de maneira livre e pouco tradicional - contrastes de vida e morte, interior e exterior, beleza e violência; os gângsteres em fuga de yakuza traidores, isolados em uma casa de praia, experimentam o tédio tirar o melhor deles; as digressões lúdicas e oníricas não demoram a serem perturbadas pelos pensamentos sombrios de seus personagens, encontrando-se entre uma concretização da violência e outra. Violência novamente feia, injustificável, que massacre seus indivíduos tanto fisicamente (expostas por Kitano de maneira sempre estática, impessoal, desapaixonada) quanto subjetivamente. Mesmo os momentos mais “leves” da película são contaminados por uma carga de suspense que jamais libera o espectador de vez até a tradicional carnificina de encerramento. Sufocados por suas escolhas, associações e por sua vida em sociedade, sempre levados pelo efeito dramático da surpresa e a exposição contínua da composição de quadro estática, mas com tremendos desejos de vida e/ou epifania, expressados pela música, pela montagem onírica oscilando entre realidade e subconsciente, os protagonistas de Kitano não recebem descanso – e é essa empatia abordada de maneira pouco óbvia por gente condenada que em Sonatine, em suas variações sobre um mesmo evento, tal qual uma sonata (movimentos de traição, isolamento e explosão, entre o extremo ruído e o silêncio revelador), projetava um estilo pouco usual para um artista já único.

 

Getting Any? (1995)

Muito se reclamava por Kitano fazer filmes lentos, introspectivos,  sérios e violentos, tratando de temas mórbidos com abordagem niilista, em aberrante contraste com o stand-up e comediante televisivo do início de carreira. Pois em Getting Any? Kitano resolveu dar ao público o que ele queria – mas não da forma que eles esperavam. Em síntese, Getting Any? é uma comédia absolutamente grotesca que muda o rumo de história frequentemente praticamente a favor das gags, dirigido em ritmo anárquico, tendo como único ponto de partida a obsessão do protagonista em conseguir transar com alguém, avacalhando com várias referências culturais japonesas estereotipadas – e tome-lhe piadas com o Godzilla, o Ultraman, Zatoichi e outras figuras que povoam o imaginário popular -  privilegiando o aspecto físico do humor, pouco intervendo na montagem e dando espaço para a performance de seus atores, explorando cada paródia e recurso de construção humorística possíveis de serem enfiados em uma hora e meia. Getting Any? poderia até ser definido como um filme do trio ZAZ feito além do Ocidente, se o humor não fosse ainda mais estranho, anacrônico e muitas vezes constrangedor. Apaixonado por contrastes, Kitano mais uma vez apostava na lógica do exagero pragmático para criar seus afetos.

 

Kids Return (1996)

Primeiro filme de Kitano realizado após um grave acidente de moto que lhe rendeu uma paralisia em um dos lados do corpo e cercado pela suspeita de uma precoce aposentadoria forçada, Kids Return é um libelo à memória feito por Beat Takeshi. Filme “de formação” que conta a história de dois valentões de escola que com o tempo acabam tomando rumos diferentes na vida, um deles tornando-se um boxeador e o outro um capanga da yakuza. O “retorno dos moleques” tem muito da escola de humor de Kitano à sua época de comediante, daquela escola “bully” de Três Patetas e O Gordo e O Magro, inseridas na estética cadenciada e melancólica do diretor, preocupada na criação da angústia e raiva típica da rebeldia juvenil em dessincronia com o mundo. Revolta sem fundamentos, argumentos, coerência – mas sempre clara, explícita e presente. Com um conflito constante trabalhado dentro de um tema maior, há um sem números de episódios de agressão, galhofa e punições. Kitano descobre empatia naquele que é o arquétipo escolar mais famigerado com seu olhar preocupado sobre aqueles indivíduos explicitamente capazes de tudo – a um passo tanto da banalização violenta quando a redenção ritual, sempre descoberta através de momentos pequenos, singelos, quase levianos – o que parece unir mesmo seus personagens mais moralmente questionáveis.

 

Hana-Bi – Fogos de Artifício (1997)

A potência da beleza e a entropia da violência nunca foram tão literais quanto em Hana-bi, palavra japonesa que, unida, significa “fogos de artifício” e, separada, representa os símbolos para “flor” e “fogo”. Essa é a tônica do filme, equilibrada o tempo todo entre a brutalidade e a ternura, onde um policial com dívidas com o crime organizado para tratar do câncer da mulher e um colega aposentado da instituição por um acidente que é abandonado pela família dividem seu sentimento de tristeza expressado pela trilha de Joe Hisashi e as pinturas de Kitano que surgem em tela, naquele filme que tem o ritmo mais “letárgico” da sua carreira, onde flashbacks são introduzidos de maneira perturbadora, utiliando a câmera lenta e a decupagem econômica para explorar a violência e seus efeitos devastadores - sobretudo permanentes - e os relances contemplativos, fugazes e efêmeros de belos momentos – o cinema, como a música, são movimento e tempo, portanto, fadados a terminar. Mesmo as pinturas, imóveis, estão inseridos em um contexto com data de expiração. E a violência continua tragando tudo, de forma ininterrupta até o último corte, último movimento de câmera e último segundo de projeção. A dualidade de Hana-Bi é organizada entre os surtos de violência, o humor físico deslocado e com seus tons de negrume e grosseria e o muito tempo dedicado aos personagens imóveis, não agindo, não falando, apenas observando – identificados com o espectador do filme, o ponto de vista em Hana-Bi captura a pulsão de vida, bela e feia, trágica e cômica e sobretudo sem rumo, com infinitas possibilidades, uma verdadeira “flor de fogo”, capaz de tudo.

 

Verão Feliz (1999)

Consagrado no Festival de Veneza por Hana-Bi e projetado à fama mundial e conquistando colegas de profissão do outro do lado do globo, Kitano resolveu novamente distanciar-se de seus filmes policiais mais lacônicos e sombrios do que o usual para investir novamente em um drama de tons mais leves, dramatúrgica e esteticamente. O resultado disso é o road movie Verão Feliz, uma das obras de Beat Takeshi que mais mexem com o lado lúdico de se fazer cinema, com aquela que é a história mais acessível da carreira do japonês, justamente com uma dupla de protagonistas com uma linha dramática de ação desenvolvida – um rabugento homem, Kikujiro, leva um garoto para visitar a mãe que nunca conheceu e durante a jornada tornando-se íntimos e confiantes, com o homem amargo e politicamente incorreto confronta as próprias angústias ao lidar com a obstinação e os inocentes sonhos do garoto, visitando muito do litoral e do interior do Japão, locação um tanto diferente do urbanismo pesado e viciado de seus outros filmes. Com a cinematografia igualmente lúdica e tons leves e primários obtidos por meio de contrastes simples, explora-se novamente a questão de dois pontos de vista sobre o mesmo assunto – nesse caso, inocência e experiência, leveza e amargura, que se confundem e se confrontam em um dos filmes mais ternos e sutis de Kitano, que busca conhecer a cumplicidade que os deslocados sentem entre si. Verão Feliz marcava a ascensão de um autor pleno, que levava seu cinema a um passo além, sem medo de flertar de interromper histórias para introduzir delírios oníricos, experimentar novas temáticas e modelos narrativos, sem nunca descaracaterizar a dualidade marcante e sensível de sua obra.

 

Brother – A Máfia Japonesa Yakuza em Los Angeles (2000)

Kitano cruza o mundo, se relaciona com uma nova cultura e descobre os mesmos indivíduos. A temática “estranho em uma terra estranha” larga um yakuza em Los Angeles, moldando uma pequena gangue norte-americana aos rigídos e antiquíssimos costumes do crime organizado japonês. É nesse encontro entre tradição e efemeridade, antagonizado por uma Máfia progressivamente mais violenta que logo massacra as frágeis conexões emocionais estabelecidas por pessoas exiladas, marginais, desajustadas e sem rumo à procura de uma unidade, encontrada na figura de Yamamoto, frequentemente referido como “Aniki”, o irmão mais velho. No filme de Kitano, onde a busca por uma unidade seja mais concreta, a câmera é necessariamente estranha ao lugar que filma, sempre enfileirando e unificando cromaticamente os disciplinados mafiosos, que direcionam seus atos violentos para uma organização sofisticada contrária à brutalidade sem ordem nem rumo. Porém, a plasticidade temporalmente estática de Kitano logo após unificar através de cores, estilos de roupa, modulação de fala, disposição espacial e repetições ritualísticas são massacradas pela violência imprevisível, “feia” e praticamente anti-estética, que deságua em um dos finais que mais agregam pathos da carreira do diretor – uma das raras concessões de Kitano ao melodrama, encenando com certo tom irônico a descoberta de uma paixão de um mundo sem ética – produzindo afeto fora da norma.

 

Dolls (2002)

(Adaptado do comentário escrito para o artigo Filmes de 2002)

As três histórias de Kitano sobre o amor fogem de qualquer sentido clássico em matéria de narrativa e estética: Dolls é um filme completamente contemporâneo em sua estilização, cujas três histórias só tem entre si um tema de “amor imortal”, que torna seus personagens marginais, pouco psicologizados, porém ricamente explorados em sua relação com espaço e tempo, com atmosfera e com elementos extra-diegese. Inspirado no teatro de fantoches, Dolls foge da tradição realista, tipicamente da dramaturgia burguesa do Ocidente, para assim como conterrâneos seus como Ozu e Mizoguchi, investir nos elementos exclusivos do cinema, investindo no lado plástico, na não-ação, na observação, nas histórias de sofrimento e devoção exploradas de maneira intensa em seu aspecto cromático – o vermelho do desejo, o preto do luto, a neve, as flores de cerejeira, o mar, o aspecto outonal. Um cinema que funciona por outra lógica, por outra estética, que recusa as amarras do storytelling para investir no aspecto temporal (a música, o tempo diluído) e visual-espacial (cores, composições em profundidade, movimentos econômicos de câmera), costurando um filme sensível em sua aparente simplicidade que logo se revela tão complexa em seus muitos pequenos detalhes.

 

Zatoichi (2003)

Beat Takeshi encarna um dos mais clássicos personagens do cultura popular japonesa: Zatoichi, o espadachim cego, que antes da repaginação do diretor já ostentava uma franquia de 26 filmes e um seriado de televisão de 100 episódios. O que o diretor entrega em seu décimo primeiro filme é a tradicional história do samurai massagista que compartilha uma carnificina estilizada, um humor pastelão e temas periféricos como questões sobre identidade e projeção - como a figura de uma gueixa transgênero em pleno Japão feudal confundindo os rígidos conceitos e limites de uma sociedade milenar e enxergando a dinâmica dos personagens sob um prisma mais desordeiro, que justamente desconstrói a figura do samurai, que parece concentrar tanto ideias de ordem e honra para a cultura popular japonesa quanto o caubói de faroeste para os ocidentais. As cores vibrantes e berrantes, junto com o balé de cortes em cenas de conflito e em números musicais criam o filme de Kitano com o maior número de estímulos visuais, onde abandona o gângster mórbido e lacônico para encarnar um nipônico de cabelos descoloridos, gentil e flexível, compreensivo e com um senso particular de justiça, numa luta contra a opressão yakuza contada com o senso tragicômico de narração do diretor pegando uma de suas histórias mais “redondas”, aproximado da narrativa clássica, só que com todos os paradigmas típicos invertidos. Mesmo seu filme mais acessível carrega suas obsessões particulares favoritas sobre signos e suas complexidades raramente visíveis e facilmente respondidas. Não à toa encerra com um final absolutamente abrupto e sarcástico.

 

Takeshis' (2005)

Onde ir depois de uma boa quantidade de filmes policias e outros mais intimistas? E de angariar fama e respeito internacionais equiparando seu nome aos grandes mestres do cinema japonês? E logo após o filme de maior apelo comercial de sua carreira? Bem, na visão de um dos artistas mais estranhos das últimas décadas, o jeito era chutar tudo para cima. Chamam de trilogia do “surrealismo autobiográfico”, do “suicídio criativo”, da “implosão criativa”, da “autodestruição criativa”... Iniciada por Takeshis', que racha Kitano em dois personagens, o grande ator Beat Takeshi e o desconhecido e fracassado Mr. Kitano, cujo encontro gera não só transformações como os coloca em rota de colisão em uma ordenação do que há mais de estranho no humor de Kitano, postos como leit-motiv em uma narrativa cheia de sonhos e delírios de Mr. Kitano, que ambiciona ser Beat Takeshi. Nesse momento em que reflete sobre a própria fama, discute sobre a própria mitologia que o cerca, destrói qualquer ritmo com sequências grandes e sem curva dramática, recursos cinematográficos como a câmera lenta sendo levados ao exagero e a montagem destruindo a coesão lógica onde os ritos estéticos do diretor (planos sequência de ritmo contemplativo, composição plástica sobre montagem, o elemento sensorial constante e repetido ad nauseum) ao invés de tornar-se fantasma, tornam-se uma “assombração”, perturbando todo o filme, incorporando o conflito à forma. Lança-se uma ideia para os próximos dois filmes: a insatisfação como elemento primordial da criação.

 

Glória ao Cineasta! (2007)

O filme mais radical da carreira de Kitano tem o mérito de pegar aquele espírito nonsense e besteirol de Getting Any? (1995) e aplicar isso sobre o próprio dispositivo: Kitano reflete aqui sobre o próprio ato de criar, utilizando sua própria figura como a de um diretor sem ideias para um próximo sucesso comercial. Sem o drama psicologizante visto em tantos outros filmes metalinguísticos: recorre-se a cultura pop no geral, referências a seus outros filmes, a intervenção cômica do narrador, para construir um filme de esquetes que após começa a narrar e implode novamente no meio do caminho . Imita-se enquadramentos  de Ozu, emula-se o horror japonês, se sacaneia a seriedade gângster: tudo para compor no final, como diz o nome da obra, uma homenagem à figura que por mais confusa e incerta que esteja, ainda se encarrega da missão de mesmerizar os sentidos. Sem forma e sem ritmo, tocado de maneira transgressora com a recusa de evoluir e se comprometer, Glória ao Cineasta! é um grito de liberdade para fazer cinema, questionar seu dispositivo, discutir estritamente sobre ele, procurar-se novas formas. E criar, indefinidamente, em um turbilhão de ideias sem unidade, sem motivos, apenas infinito.

 

Aquiles e a Tartaruga (2008)

(Adaptado do comentário escrito para o artigo Filmes de 2008)

Aquiles e a Tartaruga expressa a eterna insatisfação artística do diretor e fecha sua trilogia. Apesar de ser o mais narrativo dos três, ainda é um trabalho com a sua marca: uma sensível tragicomédia onde os párias que enfoca são obstinados em quebrar os paradigmas que os cercam – raramente conseguindo. Desta vez, um pintor sacrifica tudo em nome da arte, sem jamais ser bem sucedido. O título reflete tanto personagem quanto o artista - a referência ao mais famoso dos paradoxos de Zeno é uma analogia para a eterna sensação de insatisfação consigo mesmo. E é justamente nessa imperfeição, nos seus longos planos, nos movimentos econômicos de câmera, no ritmo desigual e quebrado, no humor deslocado e no tom paródico que nunca perde a nota tristemente humana que envolve a obra que o cineasta faz um de seus filmes mais pungentes, que só cresce na admissão e na busca. Tal tom sincero e confessional sobre a própria condição de criador é raro – e poucos conseguem tratar disso tão bem quanto Kitano, que jamais hesitou em desmontar seu próprio cinema se isso o fizesse crescer enquanto artista.

 

O Ultraje (2010)

Sim, Kitano provocou quando supostamente fez uma concessão quando saudosos de suas comédias reclamavam de seus filmes de yakuza e fez a absolutamente demente Getting Any? (1995). Agora, lidando com as reclamações daqueles que não digeriam bem seus filmes autorais e seus dramas contemplativos e intimistas e queriam de volta o gênero policial ele entrega O Ultraje, rastejando pra fora dos destroços da implosão de sua carreira com seus três últimos filmes e admitindo seu cinema ser de um caráter incompleto e por isso mesmo insatisfeito, sempre obrigado a estar em movimento perpétuo, tendo como resultado um filme yakuza completamente amoral e circular, sem progressão além do que é puramente informação: sem picos de emoção, sem personagens estritamente definidos, apenas uma maratona de traições e assassinatos brutais, com a câmera fazendo questão de explicitar a violência, encarando-a próxima e de frente, sem tremer ou se movimentar, absolutamente estática. Aos que queriam o cinema de crime, assim como Violent Cop era o anti-policial, O Ultraje é o anti-yakuza: o paradoxo dos filmes de Kitano agora impera na própria forma do seu cinema, advogando apenas a favor do afeto imagético. Antagonismos, reviravoltas, personagens: adornos que desviam o foco do que importa - a sequência, e apenas ela, como recorte do tema proposto, como instrumento de criação, como o que realmente interessa a um diretor. Fluxo de imagem acima de tudo.

 

Beyond Outrage (2012)

A última incursão de Kitano no cinema, bastante mal recebida por ser percebida como basicamente uma continuação sem muitas novidades do primeiro filme da cinessérie do diretor. O filme amplia os temas introduzidos anteriormente, com mais conspirações, formas de tortura, alianças, traições e personagens essencialmente vivendo uma vida de progressão, sucessão, perda e retirada vazias de sentido onde em matéria de hipergrafismo não fica nada a dever para os filmes sul-coreanos que eclodiram à época que Kitano reinventava seu cinema, mas que talvez seja ainda mais cruel pro ser desprovido de qualquer moral: a via crucis, a paixão psicologizante que motivava as histórias de vingança, aqui são apenas negócios. E que servem de pretexto mais para uma história fragmentada do que uma história progressivamente emocionante. Aos espectadores pouco aprofundados na obra do diretor, pode-se ver uma história que não parece continuar muito a outra além de prosseguir com a matança brutal, impassível e desemocionada; mas também pode-se apostar na leitura das variações sobre o mesmo tema, tal qual como se Kitano voltasse às suas sonatas de violência, atuando nos pilares do espaço-tempo plástico e cada vez mais distante de narrativas, atuações e tons definidos e demarcados. Agora, os “ultrajes” de Kitano são realmente e mais do que nunca peças de imagem e som, compromissados unicamente com si mesmas.

Comentários (11)

Lucas Maciel | quinta-feira, 11 de Setembro de 2014 - 13:43

Mandou muito!

Victor Ramos | quinta-feira, 11 de Setembro de 2014 - 15:30

Ótimo trabalho, Brum! Kitano merece ser mais abordado!

Bernardo D.I. Brum | quinta-feira, 11 de Setembro de 2014 - 21:22

valeu galera!

a receptividade de vocês me inspira a fazer esses voos mais altos e mais ambiciosos. os próximos já estão a caminho. 😁

Alexandre Koball | quinta-feira, 11 de Setembro de 2014 - 21:35

Baita trabalho mesmo Bernardo, me inspirou a assistir alguns dos que não vi ainda.

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