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Ingmar Allen ou Woody Bergman?

Antes de despontar nas telonas como diretor no fim dos anos 1960, Woody Allen já contava com sua vasta experiência como espectador e admirador de grandes cineastas, como Federico Fellini, Kenji Mizoguchi, Orson Welles, Akira Kurosawa e Jean Renoir. Mas para quem assistisse seus primeiros títulos, como Um Assaltante Bem Trapalhão (Take the Money and Run, 1969), pouco ficava clara essa bagagem sofisticada que ele trazia consigo. Embora tivesse migrado de humorísticos na TV e começado a ganhar fama com suas comédias, Allen procurou ao longo dos anos transitar também em projetos mais ambiciosos, acreditando que só provaria seu verdadeiro talento ao mostrar esse seu outro lado. Analisando hoje sua carreira, fica claro para todos que se ele tivesse ficado só na comédia, seria o suficiente para ganhar o status de gênio, mas que bom que ele nunca se acomodou nisso.
 
Sua primeira e incrivelmente bem sucedida investida no drama foi com Noivo Neurótico, Noiva Nervosa (Annie Hall, 1977), filme que o consagrou com o Oscar e considerado por muitos hoje como o seu melhor momento. Mas ainda assim, não foi seu mergulho de cabeça nos assuntos que tinha interesse em discorrer, pois todos eles ainda estão diluídos ali dentro em meio à acidez sarcástica de sua veia cômica e também por seu lado mais romântico-incorrigível. No entanto, foi Annie Hall que lhe garantiu créditos e autoconfiança o suficiente para embarcar em seu primeiro drama sério no ano seguinte.

Interiores (Interiors, 1978) gira em torno de dramas se desenrolando a partir de uma grande reviravolta na vida de uma família rica. Segredos de toda uma vida vêem à tona, rancores se revelam, rusgas banais tornam-se grandes embates, e todos os personagens logo se encontram em meio a crises existenciais que englobam trabalho, depressão, religião, casamento. Os silêncios e tempos mortos dominam. As personagens femininas ganham maior enfoque. As luzes e as sombras ganham um reflexo na alma e condição emocional dos membros da família. O passado surge como um fantasma neste drama dirigido por Ingmar Bergman. Ou melhor, por Woody Allen.

A sinopse denuncia claramente um trabalho dirigido por Ingmar Bergman, o maior ídolo de Allen, mas só assistindo Interiores para perceber de cara que se trata de propaganda enganosa. Este filme marca a primeira tentativa clara e sem reservas de Allen em emular a técnica e relação de temas abordados no cinema de Bergman. E que fique claro que isso não é algo ruim. Pelo contrário. Interiores é um filme competente, bem dirigido, bem atuado, bem roteirizado,  e bem desenvolvido. Contudo, por mais que haja ali no meio a boa intenção de homenagear o gênio sueco e amadurecer como cineasta, Allen peca por acabar se descaracterizando durante o processo. Na ânsia de provar maturidade para lidar com um leque de temas tão difíceis, o diretor acabou deixando de lado seu próprio cinema para se contentar em apenas repetir abordagens e ideias já solidificadas pelo cinema de Bergman.

 

Porém, já revelou que entendia o que estava fazendo, embora fossem necessárias um pouco mais de experiência e coragem para sair do plano da simples homenagem e partir em busca de um cinema com a sua cara e marca registrada. Allen é, antes de tudo, um autor. Talento não faltava para que ele pudesse andar com as próprias pernas no terreno dramático assim como já andava com suas comédias. Dois anos depois ele prova isso com a obra-prima Memórias (Stardust Memories, 1980), no qual ele baseia toda a estrutura de seu filme em nada menos que no monumento de Fellini, (idem, 1963), sem suprimir seu próprio cinema. Ao usar referência tão marcante, e ainda assim conseguir imprimir sua identidade acima de tudo, o diretor provava enfim que seu “outro lado” era tão forte e promissor quanto o outro. Mas, claro, Memórias é muito mais felliniano do que bergmaniano, o que implica na continuidade da busca por um filme cem por cento Ingmar Allen. Ou Woody Bergman.

Momentaneamente satisfeito, Allen só voltaria de novo sua atenção para o cinema de Bergman muitos anos e muitas comédias depois. Nesse tempo, amadureceu como nunca em toda sua carreira, e a prova clara disso está na sofisticação e sutileza com que usa as referências do cinema de Kenji Mizoguchi em Hannah e Suas Irmãs (Hannah and Her Sisters, 1986), filme que marca seu retorno aos dramas intimistas, por mais que ainda traga vestígios de seu humor afiado. No trabalho seguinte, Setembro (September, 1987) ele faz uma nova tentativa, numa espécie de versão particular para Sonata de Outono (Höstsonaten, 1978).

Setembro é depressivo, intimista, minimalista, quase mesquinho dentro de toda sua ambição, e por mais que soe por vezes pueril e pretensioso (principalmente no roteiro), trata-se de um trabalho inegavelmente belo, forte e relevante. Um avanço considerável em relação a Interiores, embora esteja passos e passos atrás de Memórias. Confiando a Mia Farrow um papel difícil (surpreende a entrega e bela performance da atriz), Allen acerta em especial no que diz respeito à técnica que aplica. As associações que estabelece entre o humor dos personagens com as estações do ano e o ambiente externo conferem uma natureza forte ao trabalho. Sem dúvidas um avanço, mas ainda assim uma película cheia de fragilidades, em especial no que diz respeito à relação entre mãe e filha. Enquanto a personagem de Farrow é dissecada pelo roteiro, a mãe interpretada por Elaine Stritch ganha enfoque em momentos dispersos e jamais consegue criar qualquer vínculo sólido com a trama, e o embate entre as duas, prometido desde o começo, acaba por decepcionar (nada como o tour de force de Ingrid Bergman e Liv Ullmann em Sonata de Outono, para efeito de comparação).

A verdadeira investida de Allen no cinema de Bergman com pleno sucesso se deu em seu filme seguinte, A Outra (Another Woman, 1988), no qual se notam claramente influências de obras como Persona - Quando Duas Mulheres Pecam (Persona, 1966) e Morangos Silvestres (Smultronstället, 1957). Ambientação salientada em constantes planos abertos usados nos flashbacks, em contraste com os planos fechados para os momentos mais íntimos dos personagens, é seu principal ponto forte. A cena do sonho de Gena Rowlands evocando Morangos Silvestres e a relação ambígua e misteriosa dela com a “voz” de Mia Farrow no apartamento vizinho, fora sua crise matrimonial e existencial abordada com tamanha precisão pelo roteiro, fazem de A Outra um trabalho de grande complexidade, cheio de nuances, pontuado pela atuação de uma das maiores atrizes de todos os tempos. Ao mesmo tempo tão Bergman, Allen nunca foi tão fiel a si mesmo, e quem diria que em um trabalho claramente referencial ele conseguiria atingir seu melhor como autor e cineasta.

O resultado não poderia ter saído melhor, e pelo jeito Allen deve ter se contentado com ele, pois desde então nunca mais se prestou a uma homenagem tão escancarada a seu grande ídolo, embora alguns de seus filmes posteriores sejam pontuados por uma ou outra referência bergmaniana. Independente de seus erros e acertos nessa longa trajetória, seu cinema continua irresistível, mesmo que irregular, e não seria precipitado afirmar que seja tão valioso e rico quando o de seu ídolo confesso. Afinal, trata-se de um gênio se espelhando em outro.


Comentários (22)

Heitor Romero | quarta-feira, 17 de Setembro de 2014 - 21:53

é sim, Paulo, mas me foquei apenas em seus dramas para o artigo.

MORENO | quinta-feira, 25 de Junho de 2015 - 07:55

Woody Allen, gostei muito de quatro filmes em particular: Match Point, O Sonho de Cassandra, Vick Cristina Barcelona,Blue Jasmine são temas bem variados os filmes falam sobre: culpa, relacionamento e sexo, a pessoa que enlouquece quando perde sua riqueza e status.

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