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Maio de 68 - A História


O período de maio de 68 é um dos períodos políticos de maior interesse histórico para entender o zeitgeist - ou espírito de uma época - que marcou a segunda metade do século XX. Ao longo deste mês, o Cineplayers visa apresentar obras cinematográficas vitais para a compreensão do período, seja os que o originaram, as que estavam em seu epicentro e aquelas que foram influenciadas pelo mesmo. 

Mas antes de entender a história dos filmes, é bom jogar uma luz na história por trás dos filmes. O que foi maio de 68, origens, causas, implicações, políticas, ideológicas e históricas e alguns de seus principais personagens. 

A Segunda Guerra Mundial tem seu papel central na História da França, histórica e filosoficamente falando. O país, a duras penas, sobreviveu à ocupação Nazista entre 1940 e 1944, quando ocorreu a batalha da Normandia e as forças aliadas livraram a metade do país sob domínio do nazifascismo. 

Essa época viu a ascensão crescente de Charles De Gaulle primeiro como líder da França Livre, depois como Primeiro Ministro e finalmente como Presidente, teve como característica sua ideologia política amplamente ancorada em autonomia de potências estrangeiras, populismo da figura do líder e conservadorismo social e foi uma das sementes da geração que viria a seguir, criando uma aura que, apesar de inegavelmente reconhecida entre a população civil, não se identificava e entrou em rota de colisão cada vez maior com as novas ideias.

A colonização da Argélia é outro marco. O país norte-africano foi região administrativa da França e guerreou pela independência entre 1954 e 1962, com a população muçulmana nativa lutando por sua soberania política e econômica estimulada pela emancipação da Tunísia e de Marrocos, com a repressão da França sendo criticada por crimes humanitários comparáveis aos do nazismo: de uma população de 10 milhões de argelinos, cerca de 1 milhão foram mortos e 3 milhões enviados para colônias de reagrupamento. Isso levou ao surgimento de um gap, um vazio entre figuras de autoridade e estudantes e trabalhadores; uma visão de nós contra eles que perduraria até a aura de conservadorismo que voltou a despontar na década de oitenta. 

Filosófica e culturalmente, os primeiros anos do pós-guerra marcaram o mundo além dos eventos históricos que o cercavam. Vimos a nascente de movimentos modernos em várias artes como o Teatro do Absurdo, o Teatro Vivo, a Pop-Art, o Op-Art e o Expressionismo Abstrato, o Neorrealismo Italiano. O francês Jean-Paul Sartre e sua companheira Simone de Beauvoir lançaram a ideia do existencialismo modernizando o materialismo dialético de Marx após o esvaziamento de sentido provocado pela 2ª Guerra, lançando a ideia da existência preceder a essência e a vida só ter sentido a partir do significado que nós produzimos para ela. Paralelo a isso, os EUA viam a nascente do movimento beatnik, que incentivavam prosa e poesia altamente experimentais apregoando o deslocamento físico e espiritual. 


Interessante salientar nesse sentido que o esvaziamento espiritual dos valores ocidentais da época encontraram eco em uma juventude progressivamente questionadora, que passou a experimentar conceitos como o misticismo oriental, as ideias dos relacionamentos sexuais e afetivos livres e as políticas de esquerda que estavam à toda após Cuba e China aderirem aos ideais soviéticos; O Livro Vermelho de Mao Tsé-Tung foi de grande inspiração para a juventude universitária europeia da época, que forneceu inspiração para os jovens que queriam lutar contra o sistema. Considere-se aí a morte de lideranças políticas e ativistas que representavam oportunidade de mudança, como John F. Kennedy, Martin Luther King e Malcolm X e podemos tirar daí que a juventude “hipponga” e “desbundada”, que deu seu primeiros acenos na metade dos anos 60 usando drogas diferentes dos habituais álcool e tabaco com o objetivo de “liberar a mente” e saindo da casa dos pais, pegando carona e atravessando seus países, já estava bem mais consciente e combativa.

Maio de 68 na França veio justamente desse caldeirão onde velhas políticas mostraram sinal de enfraquecimento. A França perdeu três colônias em questão de anos. Jovens estudantes e trabalhadores operários paralisaram fábricas e ocuparam escolas, em uma consciência revolucionária que se espalhou pela população sem barreiras sociais, etárias ou minoritárias. Quando de Gaulle tentou ampliar a ação policial no bairro Quartier Latin, os protestantes entraram em confronto com a polícia e Paris ardeu em chamas em um conflito civil que abalou o país. O Gaullismo mostrava sinais de desgaste e, apesar de conseguir ampliar sua bancada após a dissolução dos conflitos, entrou em sua reta final, com o líder renunciando em 1969 e vindo a falecer em 1970.

Enquanto isso, o cinema na França passava por uma revolução interna. André Bazin e a revista Cahiers du Cinema revolucionaram o modo de se enxergar cinema observando em alguns artesãos da indústria como Charles Chaplin, Alfred Hitchcock e Orson Welles o modo de refinar constantemente obsessões particulares, lançando a política dos autores. Mais que uma teoria, a ideia era batizada de política por de fato botar em prática os conceitos discutidos. Daí temos o surgimento do movimento francês Nouvelle Vague, que aproveitou as ideias dos autores, do neorrealismo e de várias quebras de paradigma narrativos e dramatúrgicos das outras artes para lançar um cinema livre, que experimentava edição pela primeira vez em décadas de maneira radical e continham um tom marginalmente heróico e crítico aos valores franceses antiquados.


Maio de 68 apresentou uma radicalização do cinema francês daquele período especialmente para algumas figuras, o destaque mais óbvio e ululante sendo encontrado em Jean-Luc Godard, que de certa forma previu o caos político da frança com Week-end à Francesa e encenou a nascente do movimento revolucionário em A Chinesa. Seu último filme do período de ouro veio com seu documentário One Plus One/Sympathy For The Devil, onde misturou imagens do grupo guerrilho Panteras Negras americanos com os Rolling Stones criando em estúdio, aliando em filme política com arte. Com desgosto, viu a política dos autores tornar-se mais uma “marca” que certos diretores criavam para vender seus filmes (o que muito criticaria em seu parceiro de nouvelle vague François Truffaut) e passou a integrar o grupo de cinema Dziga Vertov, nome dado em homenagem ao famoso diretor soviético que retratou em inventivos documentários os primeiros anos pós-revolução russa. O resultado foi Godard se afastando da popularidade dos primeiros anos e tornando-se progressivamente mais radical; provocativo, seu A Gaia Ciência foi rejeitado pela televisão local e banido pelo governo francês.

Não apenas Godard foi relevante, é claro. Outras figuras do cinema da França à época e posteriormente, como Jean Eustache e Philippe Garrel, ajudariam a repensar o que Maio de 68 significou e ainda significa não só para a população em geral mas para o cinema em si. Alguns embarcaram nas ideias e depois passaram a ver glamour nos ideais da época, como Bertolucci, mas o que ficou para a posteridade foi a aliança indissociável, ao menos para aqueles anos, da conscientização social e política da produção cultural criada e consumida, do estilo como parte indissociável do que o filme quer dizer; do enfrentamento da montagem tradicional com os jump cuts, das leis tradicionais de decupagem pelo plano sequência, pela consciência do espectador em estar assistindo o filme, a quebra do ilusionismo e a revelação do dispositivo, convidando ao espectador assistir criticamente. 

Sendo uma narrativa tradicional, Maio de 68 seria o clímax, a eclosão de inúmeros movimentos que foram nascendo, se concatenando e entrando em convergência. Na História real, deixou vários fantasmas e memórias que no Dia do Trabalhador de 2018 completam meio século de acontecimento. O Cineplayers traz, em textos individuais, artigos e análises de obras que mudaram a sétima arte como conhecemos de um jeito indelével na esperança de retratar um pouco de um período fundamental da história cultural e política recente. Desejamos uma boa viagem no tempo.

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