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O labirinto de Fritz Lang

Impossível estabelecer o que é sequência do que, qual ordem é a correta ou mesmo se existe ordem a ser obedecida. A única certeza no labirinto de Fritz Lang é a do universo circular, perpétuo e absoluto, onde se está condenado a vagar para sempre.

Um Retrato de Mulher (The Woman in The Window, 1944) e Almas Perversas (Scarlet Street, 1945) foram filmados em sequência por Fritz Lang, então já há uma década morando nos EUA e enfrentando problemas com a crítica por sua “fase americana”. São dois filmes comerciais, encomendados pela velha Hollywood, contando ambos com Edward G. Robinson, Dan Duryea e Joan Bennett. O primeiro é uma adaptação de uma obra do escritor J. H. Wallis, o segundo é um remake de um filme de Jean Renoir, A Cadela (La Chiene, 1931), por sua vez também baseado em um romance policial.

Mas o pretexto pra isto aqui não são as meras semelhanças ocasionais, a proximidade no tempo e o contexto histórico, a partilha do mesmo gênero. Um Retrato de Mulher e Almas Perversas não compartilham apenas o diretor e a conveniência que é se utilizar do mesmo elenco. Há uma relação de ambivalência correndo ali, quando postos lado a lado, e o resultado da afinidade entre eles compõe uma obra única e bilateral, sendo ambos ao mesmo tempo idênticos e simetricamente diferentes feito duas peças que se encaixam.

Os dois se acham em uma espécie de dilogia circunferente, fechada em si mesma, ecoando um no outro como versões da mesma história narradas por testemunhas que parecem discordar do que viram cena após cena, embaladas desde pelo mais doce romantismo à mais sombria desesperança. Não que os filmes não funcionem maravilhosamente quando separados, mas me dá essa estranha impressão de que assistir a um só é como sair do cinema no meio da sessão.

Mas vamos em ordem.

Normalmente subestimado (muitas vezes, por ironia, quando comparado ao próprio Almas Perversas), Um Retrato de Mulher é um dos exemplares mais extraordinários do film noir, uma fantasia revestida na própria ficção que mais parece uma homenagem ou paródia ao gênero tamanha a lucidez com que domina seus elementos (vale lembrar que em pleno 1944 não se tinha a mais vaga ideia do surgimento de um novo estilo/movimento chamado film noir).

Como Argento faria em Tenebre (Tenebrae, 1982), 40 anos mais tarde, é um personagem — no caso, Richard (Edward G. Robinson) — quem conduz a narrativa, abusando dos clichês do gênero e deixando pistas como que de propósito pelo bom desenvolvimento da sua história. O momento logo após o crime, em que ele pega o telefone, pensa por alguns instantes e desiste da ligação, é a chave de toda uma tomada de consciência onde o espectador, até então, tenta encontrar um rastro de nexo e não consegue. Afinal o homicídio foi em legítima defesa, ele conhece o assunto de trás pra frente (começa o filme dando uma aula a respeito) e sabe que está a salvo, então por que não telefona imediatamente à polícia? Resposta óbvia: sem conflito, sem trama. Óbvia pra mim, pra você e, finalmente, para o próprio Richard.

Lang prepara com cuidado as circunstâncias para fazer a atitude de Richard parecer absurda e ilógica dentro do próprio universo diegético, forçando o espectador a derrubar a quarta parede e encontrar do lado de fora da caixa o fiapo de razão que se perdeu dentro da narrativa; isto a partir do momento em que se aceita que o aparente contrassenso de Richard não passa de fruto do temperamento de um narrador onisciente. Ele pega o telefone, pára por um instante, pensa que fugir de uma investigação criminal seria super divertido, e o desliga com um sorriso de satisfação íntimo demais para ser captado pela câmera.

Todos os elementos aqui estão destacados do pano de fundo da ilusão. É como assistir a um show de mágica do backstage, onde Lang revela os cabos, as cartas marcadas e os fundos falsos das cartolas. Um Retrato de Mulher é um brinquedo de parque de diversões, uma volta no trem-fantasma. Tudo é lúdico, forçado, cenográfico. Neste mundo às avessas, quando chega o fim do dia, como contramedida apropriada para um assassinato, uma ocultação de cadáver e uma chantagem inescrupulosa, o protagonista e o resto dos personagens se reúnem para tomar uns drinks, fumar uns charutões e bater um papo sobre o andamento da investigação, e isso com o próprio detetive encarregado do caso. Uma grande brincadeira de polícia e bandido.

O mais fantástico, porém, é Um Retrato de Mulher ser ao mesmo tempo farsesco sem que o próprio objeto da farsa deixe de funcionar. Ou seja, a analogia imbecil que eu fiz ali em cima está errada; Lang não é mágico, é bruxo. Ele até entrega os truques, mas as regras que se impõem aos meros ilusionistas não se aplicam a ele, e a mentira de repente passa a se comportar como se fosse verdade. É através do suspense impiedoso que Lang captura o espectador e faz o pega-pega perder a graça, porque traindo o próprio princípio de aventura escapista, Um Retrato de Mulher é um dos filmes mais tensos do mundo. A iminência de ser pego a cada segundo e o cenário só piorando e o cerco se fechando gradativamente mais rápido e mais rápido desorienta e cria algumas das sequências mais poderosas do noir, altura em que o espectador não lembra e não se importa sobre o que é sonho e o que é verdade.

A cena do suicídio é o clímax, e também o choque entre esses dois vértices. Já que não faria nenhum sentido esposa e filhos presentes durante o sonho perfeito (muito por representarem parte importante na composição dessa realidade da qual se foge), Lang os decepa do filme logo no início, mas tem o cuidado diabólico de inseri-los neste único capítulo em que poderiam ter alguma relevância narrativa. Alice corre para avisar que tudo acabou bem; o telefone toca, a câmera o mostra ao lado das fotos dos dois filhos sobre o criado-mudo, fica ali estática por um tempo, vai abrindo lentamente para revelar primeiro o retrato da mulher e a mão imóvel que segura um copo já vazio; em seguida, enquadra Richard, fechando muito devagar enquanto ele ainda tenta atender a ligação antes da morte ao som do telefone que segue funcionando de trilha incidental pra se converter aos poucos, sem cortes, no toque do relógio de volta ao mundo real (como se sabe, é sempre na pior parte do pesadelo que se acorda).

Pela primeira vez é oferecida uma grave perspectiva de perda, e a cadência lenta e torturante da câmera ajuda a transformar o que era apenas um jogo em algo soturno e tenebroso. Mas passa, o que é mais importante. Por isso Almas Perversas é tão forte, por isso a visão final é a do mais absoluto horror. Enquanto que no primeiro a depressão típica do noir é subvertida, retomada, e subvertida de novo; em Almas Perversas tudo se inverte, e a própria expectativa atraída pelo filme anterior entra na equação para ajudar a pregar esta peça, uma extensão da mentira no sentido contrário.

 



 

 

 

Se Um Retrato de Mulher mais parece um filme-referência muito à frente do seu tempo, Almas Perversas é um exemplar ideal do material “referenciável”, perfeitamente datado, chaveado em sua própria época; um noir frio, imoral e tomado de pessimismo, onde a vida pega o homem comum e lhe oferece o prazer inédito da felicidade incondicional; não por piedade, mas para que a dor da queda seja maior. Chris (Edward G. Robinson) se apaixona apenas para saber como é estar apaixonado, se liberta apenas para saber como é estar livre — e depois, sentir a falta de tudo ao mesmo tempo.

O mecanismo de linguagem é o mesmo, mas com função completamente diferente. Repetir aquela dimensão onírica presente no primeiro funciona de isca pra cilada que Lang começa a armar; mas se lá a encenação vinha na forma de um pesadelo, aqui aparece como o mais cor-de-rosa dos sonhos, com uma diferença, entretanto, fundamental: enquanto que, em Um Retrato de Mulher, Richard é o inventor da fábula, o narrador onipotente; em Almas perversas ele mal desconfia de que é mera figura narrada. Se nada no primeiro escapa à sua influência, no segundo os personagens tramam pelas suas costas. Todas as suas fantasias mais urgentes vão se tornando realidade pelo oportunismo em acreditar e por serem encenadas com esse objetivo.

Alice e Kitty, as personagens de Joan Bennett, sentenciam com perfeição as diferenças entre esses dois universos. Em Um Retrato de Mulher, Alice (ah, as referências...) é propriedade dos sonhos de Richard; dócil, indefesa frente aos problemas do mundo, uma femme fatale que precisa ser salva por seu herói. O problema é que em Almas Perversas, apesar de Kitty ser (como esperado) rigorosamente o oposto de Alice, dissimulada e vulgar, Chris, sofrendo do mesmo encanto que serviu de substância ao seu sonho no filme anterior, parece nem de longe imaginar qual é afinal o meio de vida da moça, ou perceber qualquer maldade nos seus atos. A rigor, ele vê aquela mesma delicada princesinha na torre, e que precisa ser resgatada da mesma forma. A cena em que ela o faz pintar suas unhas do pé é o ícone maior da submissão masculina aos encantos de uma bela mulher (dizer “fatal” já é pleonasmo), essa entidade todo-poderosa do film noir.

Em Almas Perversas, Chris também vive o sonho (com uma intensidade até muito mais contagiante que em Um Retrato de Mulher), e Lang, como que discordando veementemente de si mesmo, o julga o personagem mais tolo do filme por isso.

São esses dois momentos capitais das imagens acima que abrem uma fresta no espelho e permitem que os mundos se toquem por alguns breves instantes, costurando frente e verso da mesma história em um único ponto, respectivamente o início de um e o final do outro, enquanto Richard e Chris contemplam pela vitrine as duas versões de sua musa, como se pudessem enxergar um ao outro através do vidro (sendo também bizarro que, nesses dois pequenos espaços de tempo, Alice e Kitty estejam mortas).

A oposição entre eles sugere a própria oposição entre sonho/ficção/cinema e o “deserto do real”. Se Um Retrato de Mulher é um simulacro de film noir, Almas Perversas é um noir que se esforça para simular a realidade, o mais estranho e obscuro dos mundos (como se fosse esse, o tempo todo, o pesadelo de verdade). O primeiro escancara os artifícios pra se recompor através da metalinguagem fazendo uma espécie de pastiche de si mesmo; o segundo parece a princípio usar do mesmo matiz, mas apenas pra te enganar novamente, desmanchar o sonho — desacatando o argumento do primeiro — e demonstrar sem pena que a fantasia é uma grande bobagem.

Essa polarização está presente o tempo todo ao longo dos dois filmes. Nos personagens dos geniais Edward G. Robinson, Dan Duryea e Joan Bennett, nos dois simbólicos retratos que ilustram este texto, nos sentidos e nos destinos finais dos seus protagonistas. Como nas duas versões para o suicídio, por exemplo. Em Um Retrato de Mulher, ao invés de fechar o que parecia o acerbo final inevitável como epílogo do pesadelo, revela-se uma simples e divertida ironia, velho subterfúgio narrativo; enquanto que em Almas Perversas, fracassando, traduz a mais cruel das maldições com uma macabra constatação: Chris já está acordado. Não há fuga possível, não há nada que se possa fazer.

Se Um Retrato de Mulher se dá ao luxo de terminar com uma anedota, Almas Perversas se veste de terror expressionista quando a câmera, abrindo em um panorama absolutamente opressivo, vigia o pobre homem que desce a Scarlet St. (não por acaso a “rua escarlate”, não por acaso um nome de mulher) enquanto as pessoas desaparecem devagar para revelar, aos sussurros de “jeepers, i love you, Johnny!” e “lazy legs...”, a silhueta errante de um fantasma.

Impossível estabelecer o que é sequência do que, qual ordem é a correta ou mesmo se existe ordem a ser obedecida. A única certeza no labirinto de Fritz Lang é a do universo circular, absoluto e perpétuo, onde se está condenado a vagar para sempre.

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