Saltar para o conteúdo

Artigos

O Racismo em Rastros de Ódio

O amadurecimento do faroeste como gênero acompanhou o desenvolvimento da sociedade estadunidense. Se em fins do século XIX e início do século XX este ajudou a consolidar uma nova forma de arte em um país ainda em busca de uma identidade, com o passar dos anos viabilizou-se através de uma série de alterações em sua estrutura clássica de forma a acompanhar a transformação urbana e industrial do país.

Nos anos 1950 o gênero já se encaminhava prontamente para a decadência, que por fim aconteceu na década posterior. A saturação da forma clássica, por uma platéia de valores muito mais cínicos, fez com que o faroeste redefinisse seus motes. O herói incorruptível e bem-aventurado dá lugar a um sujeito ambíguo, em crise com seus valores, mais próximo dos homens comuns e, portanto, psicologicamente muito mais complexo e interessante. O próprio código moral do gênero estava irremediavelmente desgastado, apontando diretrizes diferenciadas: os índios deixaram de serem retratados como selvagens, ganhando uma visão bem mais esclarecida e não-maniqueísta.

Esses paradoxos que se consolidam no western nesta fase encontram em Ethan Edwards (um grande desempenho de John Wayne, para aqueles que achavam que este não sabia atuar) o personagem perfeito para se expressarem. O protagonista de Rastros de Ódio (The Searchers, 1956) é um violento e solitário soldado derrotado pela própria vida. Os anos servidos ao exército deixaram-no inábil em relação ao convívio em sociedade. Edwards é um personagem sem lar e sem rumo.

Em uma das primeiras cenas do filme de John Ford descobrimos também uma característica vital de Ethan que dará a tônica de Rastros de Ódio: seu profundo ódio e desprezo para com os indígenas. O racismo de Ethan floresce na tela assim que este se encontra com Martin Pawley (Jeffrey Hunter): “Nossa, eu poderia confudi-lo com um mestiço”. Martin declara possuir “sangue cherokee, mas também sangue inglês e gaulês”, prontamente retrucado por um “não creio” de Ethan.

Este diálogo introduz a relação Edwards-Pawley que permeará todo o longa-metragem. Quis o destino traçado pelo roteirista Frank S. Nugent, baseado em romance de Alan Le May, que o próprio Edwards tenha salvado Pawley da morte quando este ainda era uma criança. Pela troca de olhares durante o diálogo citado acima, Edwards não se orgulha do gesto. E quando os dois se unem no resgate de Debbie (Lana Wood / Natalie Wood), Edwars deixa bem claro para Pawley a relação que terão: “Não me chame de tio, eu não sou seu tio. Me chame de Ethan”.

Em seu Grandes Filmes, o crítico de cinema Rober Ebert se pergunta: “Que conversas eles teriam, em companhia um do outro, meses a fio, dormindo ao relento? Como poderiam compartilhar aquela missão e não ter um interesse em comum como homens?”. A essas perguntas não teremos respostas, mas percebe-se que este relacionamento aprofunda-se, naturalmente, por questões pessoais opostas: Edwards quer encontrar sua sobrinha para matá-la, Pawley quer evitar que o “tio” cometa esse ato insano.

O ódio de Edwards perante os índios é tão grande que em determinado momento ele tenta fazer um testamento deixando todos os seus bens para Pawley. De alguma forma, seus recursos estariam em melhores mãos de um índio civilizado que em posse de sua sobrinha branca sob égide dos selvagens. Claro que chega a hora de sua redenção, quando inesperadamente acolhe a sobrinha em seu colo e profere a famosa “Vamos para casa, Debbie”. Mas como bem observa Roger Ebert, “não há indício algum de que ele tenha mudado de opinião em relação aos índios”.

Essa complexidade moral de Ethan nos indica estarmos diante de um anti-herói, de atos falhos e sem final feliz. E que acaba sendo um ícone representativo do tipo de homem que provocou tal genocídio de indígenas durante a ocupação do Oeste estadunidense. John Ford sabia que a reiteração do racismo causaria efeito contrário, ou pelo menos reflexivo. Ford era um sábio.
 
Bibliografia:

EBERT, Roger. Grandes Filmes. Tradução de Laura Alves e Aurélio Barroso Rebello. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.

Comentários (0)

Faça login para comentar.