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Os Castelos de Miyazaki

Um deles é o tradicional castelo dos contos infantis, todo esculpido em maciços blocos de pedra, misterioso, com passagens secretas, torres altas aprisionando donzelas, ponte levadiça, cercado por imponentes muralhas, calabouços, longas escadarias em espiral e rodeado por uma aura medieval. O outro é um castelo voador, de localização extremamente secreta, que segue a lenda de Láputa, descrita no livro As Viagens de Gulliver, que centraliza uma civilização adiantada no uso da tecnologia e no aproveitamento dos recursos do meio ambiente, cuja força sustentadora se encontra em um poderoso diamante cercado pelas raízes de uma árvore gigante, rodeado por um redemoinho colossal de nuvens tempestuosas que diminuem drasticamente a chance de alguém conseguir entrar vivo lá dentro. O terceiro tem mobilidade própria, derivada da força de um poderoso feitiço pactual, e é todo construído de retalhos metálicos que estranhamente lhe dão a feição humana de um rosto choroso, e passeia pelas cidades servindo de transporte para que um misterioso feiticeiro possa roubar os corações de moças jovens e belas.

Respectivamente, estamos falando dos castelos encontrados nas animações O Castelo de Cagliostro (Rupan sansei: Kariosutoro no shiro, 1979), Laputa: Castle in the Sky (Tenkû no shiro Rapyuta, 1986) e O Castelo Animado (Hauru No Ugoku Shiro, 2004), todas dirigidas por Hayao Miyazaki. Fascinado pelos mistérios implícitos característicos de todos os castelos, o diretor japonês já os usou em diversas de suas animações, e em cada uma delas podemos notar um aproveitamento diferente desse espaço, além do gradual aprimoramento estético que foi se desenvolvendo em sua carreira, assim como sua evolução notável como um exímio contador de histórias fantasiosas. Tais quais as princesas recorrentes em seus filmes (Nausicaä, San, Clarissa, Sheeta, Ponyo), ou suas mensagens sempre pró meio ambiente, os castelos são presenças importantes em suas histórias, e uma análise breve de cada um desses três selecionados pode ser uma forma de analisar por inteiro a trajetória de seu cinema.

A princípio, logo em seu primeiro longa-metragem, Miyazaki ainda guardava muitas características de sua carreira televisiva, em especial no uso do personagem Lupin III (famoso na televisão) e na construção de uma história que hoje pode parecer tradicionalíssima. E na verdade é. O Castelo de Cagliostro é a típica aventura esperada de uma animação (pelo menos para aquela época). Temos uma princesa em perigo, um mocinho aventureiro, espionagem, correria, perseguições, mistério, passagens secretas, um segredo escondido, o melhor amigo engraçadinho e fiel do personagem principal, um vilão inescrupuloso, frases de efeito, uma bela música para embalar toda a mistura e, por fim, um imponente castelo cheio de segredos. Ainda inexperiente, porém muito promissor, o diretor ainda se valia do formato televisivo de se conduzir histórias, por isso por vezes tudo parece um capítulo de desenho animado um tanto quanto alongado, com traços simplíssimos e cores não tão vivas. Na apresentação dos personagens já se nota esse imediatismo cômico, na sucessão de piadas e na avalanche de acontecimentos importantes, sem dar trégua para o espectador e sem se preocupar no desenvolvimento de cada personagem, como se todos ali já fossem velhos conhecidos do público e aquela fosse apenas uma das muitas aventuras a serem contadas.  

E, no caso do castelo, tudo é bastante tradicional também. Desde os traços simples, e a concepção visual básica, com seus blocos de pedra cinza grotescos, escadarias intermináveis e tudo o que já estamos acostumados a ver em castelos de contos de fadas, até seus mecanismos internos comuns e os conflitos que abriga em suas paredes cilíndricas e teto abobadado. Em seu primeiro castelo, Miyazaki decidiu optar por seguir os padrões e se arriscar a contar histórias pela maneira mais convencional possível, talvez como um primeiro passo, ou um teste com o cinema. Foram precisos anos até que ele conseguisse chegar a uma concepção mais definida de cinema de animação como algo diferente e muito além das suas semelhanças com um desenho animado matinal das tevês, mas talvez ele nunca tivesse alcançado seu êxtase se não fosse por esse primeiro e importante passo em sua própria versão de um autêntico “castelo assombrado”. No entanto, sua curiosa escolha para o desfecho dessa história clichê foi de surpreendente ousadia, inclusive no fim dado ao castelo. Sem apelar para um fim definitivo, onde todas as questões se resolvem e todos vivem felizes para sempre, o cineasta optou por algo mais vago, e essa sua qualidade viria a ser um dos maiores trunfos de sua carreira, além de um dos seus grandes diferenciais.

Já no comando do Studio Ghibli, depois do avanço impressionante na técnica e na narrativa que alcançou com Nausicaä do Vale do Vento (Kaze no tani no Naushika, 1984), Miyazaki já estava preparado para seu “próximo castelo”. Baseando-se na lenda da cidade flutuante de Láputa, do clássico literário As Viagens de Gulliver, o cineasta finalmente deixou a imaginação ilimitada alçar voos maiores (em todos os sentidos, dados os infindáveis conflitos aéreos de trama). Apesar de fortemente amarrado a uma história já existente, o que talvez implique no questionamento da originalidade da obra, Laputa abre portas para um cinema mais exacerbado, livre de amarras narrativas, onde começou a apostar em conduções que não trilham necessariamente rumo a uma conclusão definitiva. Desta vez manteve a aura de mistério em volta do castelo, como no de Cagliostro, em especial no que diz respeito à sua exata localização em meio ao vasto céu que tantos os mocinhos quanto os piratas exploram exaustivamente. E mais do que isso, acabou criando uma forte conexão entre os personagens e a aura enigmática que emana do castelo, quando este finalmente é descoberto – outra questão sempre forte em seus filmes, da cumplicidade que se estabelece entre ambientes e cenários com o humor e mesmo com a alma dos personagens.

Mais do que um castelo que guarda um tesouro e um mistério sobre o passado da protagonista, Laputa inaugura uma fase limítrofe na carreira de Miyazaki, ou um divisor de águas. Ao mesmo tempo em que se vale de uma lenda literária, o cineasta também insere sua própria forma de contar histórias, independente de elas serem ou não de sua autoria. Daí em diante, não houve limites ou amarras que o prendessem ao chão, ao lógico, de forma que nem em seus universos regidos a mágica e fantasia ele se manteve preso a delimitações espaciais ou mesmo narrativas. Tudo em seu cinema depois de Laputa ignora qualquer tipo de lei, ou de obrigação de se chegar a uma conclusão (armadilha propagada pelas animações da Disney, que obrigatoriamente sempre têm um fim redondo e conclusivo, que de certa forma acaba com toda a mágica da situação).

Por causa disso, os filmes de Miyazaki permanecem vivos mesmo depois do término da sessão. Como não há conclusões (do tipo “viveram felizes para sempre a acabou”) e nem todas as histórias se resolvem, é como se ele colocasse não um ponto final, mas sim reticências no destino de seus personagens, cabendo ao espectador dar continuidade, inserir sua própria imaginação e entrar no devaneio de deduzir os possíveis caminhos que aquela história ainda viva no ambiente pode oferecer. E isso se dá, em especial, pelo ato de destruir seus elementos-chave nos momentos finais de suas tramas – no caso, os castelos. Tanto o castelo de Cagliostro como o castelo de Laputa, desmoronam perto do desfecho da história, e com isso se oferece não um fim a eles, mas sim um recomeço, como se por baixo das ruínas deles emergisse alguma força invisível capaz de manter o fôlego daquele momento. Ou seja, a queda destes castelos não significa o fim, e sim uma oportunidade do espectador reconstruir aquele universo de acordo com suas próprias ideias.

Mas foi somente com a maturidade alcançada em trabalhos como A Viagem de Chihiro (Sen to Chihiro no kamikakushi, 2001) que Miyazaki conseguiu se aprimorar a ponto de chegar ao nível de convergir toda sua mágica na técnica e na narrativa com o estupendo O Castelo Animado, provavelmente sua animação mais madura. Aqui toda essa ideia de castelo misterioso é remodelada quando finalmente o próprio ganha vida, se deslocando pelos ambientes de acordo com sua própria vontade, como representação dessa capacidade orgânica do diretor em transitar entre mundos, dimensões e realidades através de simples inserções. É quando o castelo ganha seu contorno mais interessante e definitivo na filmografia de Miyazaki, como uma figura berrante a atravessar o tempo, superar as dificuldades do mundo, se mutacionar em diferentes lugares e ao mesmo tempo não permanecer em nenhum, sendo capaz invadir sonhos, lembranças, sentimentos com a mesma facilidade com que atravessa um lugar físico e palpável. E ele também desaba, também se desfaz ao fim da história, quando a mágica que o mantém vivo acaba, permitindo a renascença da trama.

Com O Castelo Animado, Miyazaki subverte de vez as tradições narrativas presente principalmente nas animações, onde se pré-supõe que por serem voltadas ao público infantil devem a toda hora cair na auto explicação, como se as crianças não fossem capazes de lidar com uma história não linear. Aqui ele usa o seu castelo apara apostar todas as fichas no poder da imaginação como a chave para liberar a narrativa de tudo que tente prendê-la a um único caminho; aqui mil histórias nascem e morrem a cada segundo, e nem todas ganham explicações detalhadas, mas isso não nos impede de assimila-las, na verdade só nos estimula a criar junto com o criador. Nunca sabemos, por exemplo, dos detalhes que envolvem o feitiço que transforma Sophie em uma senhora idosa, visto que por vezes ela parece recuperar parte da jovialidade e, no fim das contas, esta questão nem é finalizada. Sophie termina no filme, ainda enfeitiçada, e apenas lida com isso. Por quê? Por que aquilo não é o fim da história para ela; mais uma vez, a história nunca morre na mão de Miyazaki. Ele a joga no ar e a mantém viva ali, compartilhada com nós espectadores. Seus personagens, em poucas palavras, permanecem vivos; mesmo os seus castelos desfeitos.

Terminando por aqui essa breve análise da carreira de Hayao Miyazaki tendo como base os castelos de três de seus filmes, cada qual pertencente a uma distinta fase de seu desenvolvimento como cineasta, podemos dizer que o que começou como um diretor de caráter televisivo, que aposta todas suas fichas nos clichês de uma história infantil regada a romances fáceis e situações corridas, marca presença hoje como um mestre das cores, dos traçados e, acima de tudo, dos sentimentos transmitidos em tom fabuloso. Aos poucos se aprofundando na exploração das possibilidades que um papel e um lápis podem atingir diante de uma folha em branco, hoje ele consegue se manter acima de efeitos especiais vazios, ainda acreditando que através de seus castelos poderá continuar captando a magia e a indefinição do que é ser uma criança, ou mesmo um adulto, que não deixa a imaginação morrer na cabeça em momento algum do dia, e que enxerga em qualquer mínimo detalhe a possibilidade de se criar um novo universo repleto de chances que não se deixam barrar pela linha do horizonte.

 

Comentários (15)

Lucas Nunes | segunda-feira, 22 de Julho de 2013 - 14:01

"nao suporto animações japonesas chinesas coreanas e tauz"

Isso prova que você não tem bom gosto.

José Silva | quinta-feira, 25 de Julho de 2013 - 14:27

"nao suporto animações japonesas chinesas coreanas e tauz"

Veja qualquer coisa do Miyazaki e mude sua opinião. São tantas OP que não tem como não gostar de alguma.

João Davi Minuzzi | quinta-feira, 25 de Julho de 2013 - 22:58

Eu não suporto animações japonesas, chinesas, coreanas e afins... (Death Note talvez seja a mais elaborada e passa... Além de alguns desenhos de infância como Sakura, DB, Shinzo, Pokemon).
MAS... Esse cara (miyazaki) parece ser muito bom. Não cheguei a ver nada dele, mas estão na lista!

Luiz F. Vila Nova | sexta-feira, 08 de Agosto de 2014 - 15:26

O mais impressionante nas animações de Miyazaki é que, por mais fantasiosas e mirabolantes que sejam suas tramas, o realismo alcançado por ele, nenhuma animação ocidental consegue se equiparar (a Pixar é que mais se aproxima, visto que tem forte influência da Ghibli).

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