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Artigos

Sobre Bergman e o extermínio

Jean-Claude Carrière, em seu A linguagem secreta do cinema, lembra um encontro que teve com Bergman em 1972, e como aproveitou a oportunidade para perguntar a respeito de uma cena que o fascinava: o monólogo de Bibi Andersson que vemos duas vezes em Persona - Quando Duas Mulheres Pecam (Persona, 1966), uma com a câmera em Andersson, outra em Liv Ullmann. O cineasta respondeu, com simplicidade, que sua intenção original era montar a cena normalmente, mas que ao alternar entre os rostos de Ullmann e de Andersson na sala de montagem sobreveio à cena um “tumulto” indesejado, uma troca inadvertida de gestos que só fazia emprestar-lhe tensão e opacidade. O efeito alcançado pela repetição e pelo foco exaustivo sobre os rostos das atrizes é portanto o de um antídoto, uma espécie de depuração dos processos que recontam na tela a expressão facial e a leitura do texto ao que há de mais simples/primitivo no cinema, e que retorna de muitos modos ao palco do teatro — não para simulá-lo, mas para deferir-lhe a força dos seus mais caros objetos (o ator e o texto, respectivamente). No mesmo Persona, minutos antes, a história de Andersson a respeito de uma tarde de sexo com dois garotos e uma desconhecida, numa praia deserta como num sonho, é permitida somente aos ouvidos do espectador, que deve ocupar seus olhos com o que realmente interessa (as atrizes, a disposição do quadro). A cena, radical em um primeiro momento, apenas obedece ao mesmo cuidado que o cineasta levou a cabo em toda sua carreira: retirar do caminho do que é orgânico (e finito, passageiro) a mecânica das trucagens de cinema.

Mora no enquadramento de rigor inescapável dessa cena a quintessência da arte de Bergman, do teatro puro e infinitesimal do rosto, lavrado apenas nas coisas que têm a inestimável propriedade de morrer. Se a devoção ao humano condenou seu cinema a um ciclo descontínuo de investigações sobre a dor, a paixão e o medo, levando-o a um esgotamento temático por demais pacificado mesmo entre seus maiores admiradores, ela parece indicar ao mesmo tempo que sua preferência nunca esteve alinhada a este caráter de eternidade facilmente atribuído ao cinema. Bergman interessa-se pelo que não é apreendido, mas presenciado em caráter singular; como a vida, o homem e sua concepção teatral de cinema, dado ao espetáculo do corpo e da face, nunca da mobilidade, da afeição ao deslocamento que a segunda arte possui em vantagem sobre a primeira.

O conhecido fato de que Bergman preferia o teatro ao cinema verifica-se exatamente no que seu cinema tem de melhor: a valorização do corte e a duração do plano, a composição do quadro e a direção do ator. Bergman nunca foi um cineasta do fora de campo (nem em A Hora do Lobo [Vargtimmen, 1968], seu extraordinário filme de horror), nunca foi um cineasta do movimento (nem em seus road movies, nem na exasperação calculada de Vergonha [Skammen, 1968] ou A Paixão de Anna [En Passion, 1969]), tampouco da paralisia pretensiosa de quem captura naturezas-mortas. A grande pulsão de vida do seu cinema pertence ao que é hermético, implosivo; à virtude que sua câmera cultua de abraçar a ação com a mesma caridade com que abraça seus personagens, de conter num plano o que não pode ser contido na dinâmica fragmentária do contracampo.

O conto erótico narrado em Persona, das cenas mais conhecidas do diretor, guarda a matéria-prima desse cinema de aguardo e de foco, dessa câmera que vela seus modelos. Nada externo ao que é próprio do homem jamais interessou a Ingmar Bergman. Sua atenção volta-se ao mínimo não notado sem o privilégio dos recursos do cinema, por sua abreviação de espaços e pelo ritmo que ele impõe, como naquela linha de expressão que só aparece sob um refinado chiaroscuro para se contemplar na nobreza reservada à grande tela. Sob este aspecto, Bergman encontra no cinema o que não é possível recriar no teatro. A manipulação do ponto de vista e do tempo de abertura desse escrutínio dado ao espectador são prerrogativas do cinema, e, ao lançar mão desses mecanismos, foi permitido ao diretor humanizar o metálico processo de filmagem e montagem, de emprestar potência aos elementos mais básicos do teatro: novamente, o ator e o texto.

Na cena da aventura sexual apenas narrada, nunca vista, as raras mudanças de quadro são como ampliações de um negativo fotográfico: embora partamos de planos médios muito pacíficos, em que se obtém a localização de ambas dentro do quarto e o todo do corpo de cada uma, não raro quando as duas ocupam o mesmo plano (Andersson à frente, Ullmann ao fundo), somos a cada corte tragados para mais perto dos rostos das atrizes até que elas já não caibam dentro dos limites da imagem. O close, como se sabe, é uma invenção do cinema. Essa capacidade de aproximar um rosto ao mesmo tempo em que se recorta o quadro, jogando o espectador para dentro do ator e fazendo transbordar a composição inicial da imagem, não é possível no teatro, por isto cada impulso de máquina operado por Bergman só se realiza para doar-se ao elemento humano da cena; as trucagens mais artificiosas, como a colagem dos rostos um no outro e o duplo foco em Ullmann e Andersson, na cena do beijo com seu marido, só se ligam para amplificar essa perspectiva ontológica das relações entre um ator e outro na cena. Como no rosto de Ullmann eclipsado pelo de Ingrid Bergman na cena da execução de Chopin em Sonata de Outono (Höstsonaten, 1978), ou na reconciliação de que somos privados em Gritos e Sussurros (Viskningar och rop, 1972). Close, ângulo e duração impingidos na pesquisa do que é humano, e esta é a beleza maior em Bergman, sua fantasia e obsessão: tudo o que é humano, morre.

Mesmo o momento supremo do gozo é interrompido pela presença da morte, fantasma da obra bergniana. A narração poderosa de Anderrson vai do êxtase ao êxtase, em bandas diferentes — do momento da concepção da vida ao momento de sua cessação —, ao pôr o aborto e o orgasmo na mesma sucessão dos fatos. A motivação para o interesse de Bergman no teatro, nas faces, na morte é somente uma: atrai o diretor a violência do efêmero. Um plano que se rasga para o sobrevir de outro, um ato que se apaga para a introdução do seguinte; importa ao diretor a anatomia mutante de faces passageiras como importa a natureza singular e inapreensível do teatro, um espetáculo cujo grão de sua arte não pode ser capturado. Não se vê, em uma revisão da peça, a mesma peça vista pela primeira vez. O cinema, ao contrário, desloca tempo e espaço pelo registro — pela mecânica, artifício — de que depende. Ao filmar a narradora Anderrson e a ouvinte Ullmann, Bergman cristaliza em filme os rostos, corpos e vozes de duas pessoas que, como todas no mundo, estão a caminho da morte; e ao realizar este processo inevitável de captura, ele lhes extirpa o que possuem de mais belo: o inadiável encontro com o fim de si mesmas, incorrendo na perda de sua singularidade. Que força pode haver no drama humano sem a perspectiva da morte?

Em vias de paliar este sortilégio, voltando-se contra a transformação de seus modelos em objetos de gesso, Bergman joga com o que é humano e decadente o quanto pode, filmando da morte o que lhe é inerente e da vida o que lhe é terminal. Feito anjo exterminador, Bergman filma para desfazer a imortalidade da imagem, para dessignificá-la; ou seja: Bergman filma para matar. Restam às superfícies de sua imagem a brandura e a carnificina que coabitam a alma humana.

Comentários (15)

Felipe Alekhine | sábado, 11 de Agosto de 2012 - 21:08

Texto Genial sobre Mestre Bergman.

Bernardo D.I. Brum | domingo, 12 de Agosto de 2012 - 03:38

Não à toa, o termo "enquadrar" surgiu da tourada, quando o toureiro desfere o golpe e "mata" a realidade.

Belo texto.

Gabriela Almeida | domingo, 12 de Agosto de 2012 - 09:40

Ótimo texto sobre Bergman! Confesso que também achei o texto prolixo por estar saturado de adjetivos, mas parece ser escrito por alguém que conhece e ama os trabalhos do mestre.
Parabéns.

Fernanda B | sábado, 18 de Agosto de 2012 - 23:02

Gostei do seu texto, principalmente porque sinto falta de uma análise mais técnica em relação a certos filmes e acho sempre mais complicado quando se trata de Bergman (um dos meus diretores favoritos, aliás). Na próxima vez que eu rever Persona vou tentar prestar atenção nas coisas que você atentou.

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