Saltar para o conteúdo

Artigos

Um apelo nostálgico, saudoso e pessoal à animação - parte II

Parte II - O Hiato

A Segunda Guerra Mundial e uma greve dos animadores do estúdio desviaram a Disney do caminho espetacular que estava seguindo com os primeiros longas de animação, mencionados no texto anterior. Essas duas motivações unidas, embora bastante distintas, conseguem justificar os filmes feitos no período de 1942 (Bambi) até 1950 (Cinderela). De muitas maneiras, esses filmes se mantêm muito mais uniformes no “o que dizer” e “como dizê-lo”. Lógico, há desvios para essa produção correta e repetitiva, e eles são absolutamente deliciosos.

O estúdio passava por um momento de dificuldades financeiras, e a Guerra — mesmo tendo contribuído com determinadas produções — certamente não deixava a situação mais fácil. Sem dinheiro e sob pressão de uma longa greve de animadores, restringiu-se à produção de coletâneas de curtas (muito menos ambiciosas e ousadas que Fantasia) e de filmes live-action que interagem com animação, como Tão Perto do Coração (1948), Canção do Sul (1946) e o curioso documentário O Dragão Relutante (1941).

A Segunda Guerra está evidente na narrativa dos filmes — Alô, Amigos (1942), Você Já Foi à Bahia? (1944), Música, Maestro (1946), Como É Bom se Divertir (1947), Tempo de Melodia (1948) e Dois Sujeitos Fabulosos (1949). Para tirar do caminho o óbvio, dois deles foram produzidos a partir de viagens financiadas pelo governo americano à América do Sul como parte da política de boa vizinhança, que pretendia diminuir a grande influência cultural alemã e tornar mais branda a política externa americana com seus vizinhos de baixo.

Alô, Amigos, assim como a maioria do que foi produzido nesse hiato, é mais interessante como evidência de um momento histórico que por qualquer conquista estética particular. O caráter diplomático do filme é salientado no documentário Walt & El Grupo (2008), que acompanha a viagem. Alô, Amigos  facilita o próprio trabalho colocando personagens consolidados como Pato Donald e Pateta na estrutura narrativa a que estão acostumados. Não há nada de muito novo. O mesmo não pode ser dito de Você Já Foi à Bahia?. Dois curtas-metragens destonantes preenchem o tempo — uma necessidade constante e que enfraqueceu muitos dos filmes do período — e atrasam o que é uma demonstração de cinema experimental ainda mais extrema que Fantasia ou a Pink Elephant’s Parade em Dumbo.

Sem ser tão diplomático quanto seu antecessor, é também mais verdadeiro nas homenagens locais. Aurora Miranda cantando Os Quindins de Ya Ya enquanto interage com Donald e Zé Carioca talvez seja a mais sincera expressão de brasilidade de todas as tentadas pela política de boa vizinhança (que inclui, não vamos esquecer, vários filmes americanos com Carmen Miranda). Já entre as sequências que apresentam o México, temos Carmen Molina performando uma dança folclórica com gigantescos cactos animados e Dora Luz cantando You Belong to My Heart de dentro de um botão de rosa. A união de animação com live-action nunca de novo foi tão radical — e, com o CGI acabando com o belo contraste que despertava da mistura e fazia dela o que era, dificilmente o será.

Em Música, Maestro e Tempo de Melodia não se pretende nenhuma perspectiva que uma os curtas tematicamente. A não ser, lógico, a presença da música. Não fica bem para eles que intenção parecida teve o muito superior Fantasia, mas é preciso perceber como diferença básica que, enquanto Fantasia buscava no filme animado a mesma erudição da música clássica, esses dois se aliam a estilos musicais mais populares, como o country, o jazz, a valsa e a ópera.


Apesar de serem todos bastante convencionais, alguns curtas mais bem executados conseguiram sobreviver ao esquecimento. Pedro e o Lobo, uma interessante adaptação de fábula ambientalista soviética, e Era uma Vez no Inverno, que depois seria reaproveitado para o clipe de Jingle Bells, tornaram-se pequenos clássicos do estúdio. Meu preferido é, definitivamente, All the Cats Join In, em que um lápis de desenho onipotente conduz a trama sobre alguns jovens curtindo o american way andando de carro, tomando sorvete e dançando ao som de uma jukebox. É viciante.

E é justamente na manutenção de uma hereditariedade cultural americana que a Guerra voltaria a influenciar a produção do período. Além de All the Cats Join In, há outros filmes — mais fincados na noção de pioneirismo, de empreendimento individual, e situados no que se imagina ser o início da história americana. Pecos Bill e Johnny Appleseed, o cowboy e o fazendeiro que protagonizam cada um seu distinto curta-metragem, já faziam parte da narrativa americana antes mesmo de serem animados pela Disney. As suas respectivas fábulas carregam com rigor o valor moral frequentemente repetido por Música, Maestro e Tempo de Melodia, possibilitando um contraste que torna os filmes restantes do hiato ainda mais estranhos.


Se João e o Pé de Feijão já é o mais questionável dos contos de fada — seu herói, afinal, é um ladrão assassino —, a presença de Mickey, Donald e Pateta não alivia a moral dúbia da trama. Pelo contrário, Mickey e o Pé de Feijão — ironicamente parte do filme Como É Bom se Divertir — justifica as atitudes de seus personagens no desespero da fome, que nele cumpre uma função visual tão forte e urgente quanto no clássico do realismo social Vinhas da Ira (1940) e em Em Busca do Ouro (1925), comédia de Charles Chaplin sobre a garimpagem.

Os dois últimos protagonistas do hiato, o Sr. Sapo e o Professor Ichabod, são mesquinhos, egoístas e detestáveis. Eu francamente não sei — e já fui aos limites da superinterpretação para tentar entender — como a narrativa Disney foi do carola Tempo de Melodia para as amoralidades de Dois Homens Fabulosos para, finalmente, ter seu grande retorno ao mercado de longas-metragens com Cinderela. Se a estética do hiato parece padronizada, com a exceção de Você Já Foi à Bahia?, Cinderela vai consolidar uma estrutura narrativa que duraria até a virada do século, como veremos no próximo texto.

Comentários (5)

Heitor Romero | segunda-feira, 25 de Agosto de 2014 - 11:35

Essa é uma fase da Disney pouco comentada, mas com bons filmes. Gosto bastante de Canção do Sul, Você já foi à Bahia? e All the Cats Join In. Era uma Vez no Inverno eu acho mais chatinho.

Landerson DSP | segunda-feira, 25 de Agosto de 2014 - 21:27

Eu lembro que comprei uma DVD que vinha com um filme dos três mosqueteiros com o Mickey e nos extras tinha o curta do Cavaleiro sem Cabeça que pertence a As Aventuras de Ichabod e Sr. Sapo. Se tornou um dos meus filmes preferidos da Disney.

Raphael da Silveira Leite Miguel | segunda-feira, 25 de Agosto de 2014 - 22:59

Ví esses filmes faz tempo, na minha infância. O que eu mais me lembro é desse "Você Já Foi à Bahia?" com o "brasileiro" Zé Carioca.

Achei interessante esse "Canção do Sul", depois vou atrás dele...

Ricardo Nascimento Bello e Silva | quarta-feira, 27 de Agosto de 2014 - 17:06

Belíssimo artigo. Vou procurar por "Alô, amigos", gosto muito do Zé Carioca, essa fase da Disney realmente precisa ser mais comentada.

Faça login para comentar.