Os Estados Unidos da América sempre tiveram como uma espécie de ideal básico a liberdade. O fato de sua origem estar ligada ao levante de um povo contra uma nação estrangeira opressora deu-lhes a ideia de que aquela é, como diz o seu próprio hino, a terra dos livres e a casa dos bravos. O principal cartão-postal do país mostra isso. Mas existe uma ferida ainda não cicatrizada na história norte-americana, ignorada por muitos anos em nome do ideal "land of the free and home of the brave": a escravidão. Esse delicado tema vem sendo abordado no cinema recentemente por bons filmes como "Django Livre" e "Lincoln". Em "12 Anos de Escravidão", a escravidão é mostrada por um ângulo diferente: sobre aquele que já foi livre e perdeu sua liberdade.
O filme trata a história real de Solomon Northup (interpretado por Chiwetel Ejiofor), um negro livre que vivia no norte dos EUA na época que o trabalho escravo ainda era predominante nos estados sulistas. Por ele ser bem instruído, conseguiu uma certa ascensão social, formando uma família com uma mulher negra também livre. Mas, durante uma viagem a negócios com dois empresários supostamente interessados em seu trabalho, Solomon é sequestrado, sem os seus documentos, vendido para os fazendeiros do sul como se não fosse um homem livre.
A película começa com uma tomada de Solomon já com alguns anos de trabalho escravo, colhendo cana em uma fazenda. Um detalhe interessante aparece: como ele não tinha tinta, acabou usando a seiva de framboesa para poder escrever uma carta, seiva essa que tem um tom vermelho forte parecido com o de sangue. O espectador aí já tem uma noção que a sua história, que está começando a ser contada, foi escrita com sangue.
A edição do filme também chama a atenção por não seguir uma linearidade. O diretor Steve McQueen faz, em alguns momentos-chave da trama, flashbacks comparando os diferentes momentos da vida de Solomon, dando mais ênfase no contraste de sua vida quando ele era livre e no momento em que era escravizado.
Mas o grande trunfo do diretor foi dar ao filme um tom que chocasse, ainda mais que os outros filmes sobre a escravidão no passado dos EUA. Cenas de açoites, com closes nas costas nuas em carne viva já são batidas no cinema, mas McQueen faz de uma forma que a violência se faça ainda mais explícita. A primeira cena dos açoites choca porque ela é passada poucos minutos dele aparecer com sua família, livre. A propósito, vale aqui destacar uma das melhores cenas do filmes, quando Solomon acorda em uma sala escura, com apenas uma fonte de luz, não conseguindo sequer se levantas por causa das correntes e algemas. Nesse momento, o espectador consegue sentir o seu desespero, quando ele, sendo negro livre em um país em que a maioria das pessoas de sua cor são escravizadas, se vê acorrentado em um quarto fechado.
Um fato curioso é o modo como a violência existe e é justificada dentro da sociedade escravista da época. Quando Solomon chega à fazenda de Edwin Epps, a câmera dá uma visão geral da fazenda. Os trabalhadores estão fazendo o seu ofício normalmente, sob po olhar dos capatazes e, ao fundo e fora de foco, estão dois escravos sendo açoitados. Uma violência normal, cotidiana, habitual, justificada através de uma estranha interpretação da Bíblia, causando um medo entre os escravizados com relação à rebeldia aos seus senhores (outra cena também se destaca nesse aspecto, quando um escravo que estava sob o poder dos traficantes, no momento em que se reecontra com o seu senhor, lhe dá um abraço, ignorando as atrocidade que lhe foram cometidas). Outra sequência marcante é a do mercado de escravos. O vendedor mais parece um daqueles caras que aparecem nas propagandas de lojas de eletrodomésticos, passando de cliente em cliente citando as qualidades das mercadorias humanas
A parte técnica do filme brinda os olhos e os ouvidos do espectador. A fotografia com certeza é o atributo técnico que mais chama a atenção. A cena em que Solomon fica pendurado em uma árvore, com uma corda no pescoço é sensacional, vista de todos on ângulos, justamente para dar uma ideia do tempo que ele estava pendurado ali. A trilha sonora, típica de Hans Zimmer, também é boa, em especial na sequência do navio, com vários sons metálicos, dando uma clima mesmo de prisão à cena. As locações, mostrando as espetaculares paisagens do sul dos EUA, são belíssimas. A boas atuações também marcam o filme, com direito até uma ponta de ninguém menos que Brad Pitt. Por mais que Chiwetel Ejiofor e Paul Dano (fazendo um trabalho bem parecido com o que ele fez no espetacular "Sangue Negro") tenham feito bem os seus papéis, o destaque no elenco masculino do filme fica mesmo com Michael Fassbender, passando muito bem a personalidade doentia do seu personagem. Entre as mulheres, Lupita Nyong'o faz a melhor atuação do longa (tanto que levou o Oscar), em especial na cena mais chocante do filme, quando ela é açoitada por Solomon. A expressão facial que ela demonstra a cada açoite é de cortar o coração.
Em tempos em que o racismo é esnobado por muitos, visto como algo ultrapassado e que já foi vencido, esse filme soa como um puxão de orelha na sociedade, para que esta observe na atualidade a condição não só dos negros mas da população miseável em gereal, e reflita se realmente a violência racial e social acabou com a Lei Áurea ou Emenda XIII na Constituição norte-americana.
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