Como alguns de nós já devem saber, existe, entre os humanos, um fenómeno chamado “pressão do grupo”(chamemos-lhe PDG). Como o nome indica, esta expressão reflecte a pressão que um grupo exerce sobre os elementos que o compõem. E a PDG não “existe” como um fenómeno abstracto citado por elementos a quererem argumentar ou contrariar; é um fenómeno humano oficialmente reconhecido pelos especialistas na psique humana. Portanto, existe. E as intenções do grupo nem sempre impedem a existência desta pressão. Tenha o grupo uma boa, má ou neutra intenção, a diferença causa sempre alvoroço (veja-se, não sei...quase todas as guerras que houve até hoje!), seja ele grande ou pequeno. E é esta PDG que torna mais difícil para o ser humano admitir, no meio de um grupo de vegetarianos, que não é contra o matar animais para comer. Ou, no meio de um grupo de cinéfilos que se prefere o filme 2010 – O Ano Em Que Faremos Contacto a 2001 – Uma Odisséia no Espaço. Sobretudo quando temos em conta que o filme de Kubrick é um filme invulgarmente consensual entre cinéfilos com gostos muito diferentes.
Posto isto, podemos perguntar: se não nos contarmos com o efeito da PDG, o que impede um cinéfilo de afirmar que 2010 é melhor do que 2001? A resposta é: praticamente nada. Sem a PDG, o filme vale por si e pode perfeitamente superar o original. Assim, só eventuais erros de 2010 o podem tornar menos bom que 2001. Porque mesmo considerando que 2001 é um filme de qualidade, tem alguns problemas que o impedem de ser melhor. Pelo menos, eu vejo alguns problemas. E o meu principal problema com 2001 é um problema de gosto: não engraço com filmes que “pedem” ao espectador para cada um tirar a sua conclusão sobre o que se passou no filme. Pessoalmente, esta escolha parece-me quase sempre uma saída fácil para o roteiro. Os ingleses têm um bom termo que define a escrita de um roteiro que usa saídas fáceis para as dificuldades propostas na história: lazy writing. E, no caso de filmes como 2001, a saída fácil é a tal atitude de “Ah, eu não resolvi esta cena; pensem vocês no que aconteceu, que cada um há-de chegar a uma conclusão.”. Isto pode não ser, mas costuma dar-me a sensação de que houve lazy writing na construção do roteiro. É certo que, no cinema, não é obrigatório nem recomendável mostrar tudo. Afinal, se fosse, era preciso filmar, do início ao fim, o acto sexual de um casal de um filme romântico! E não é preciso tanto. Mas uma coisa é deixar acontecimentos implícitos. Outra é mostrar vários acontecimentos extraordinários que, presumivelmente, têm explicação...e não explicar nada! É por estas e por outras razões que eu não gosto muito do final de 2001, assim como não gosto do final de A Origem – embora esta comparação possa parecer completamente iconoclasta.
E tendo em conta que 2010 é um filme que, por si só, exige algumas explicações que não nos foram dadas em 2001, mais facilmente seria um filme que eu preferiria ao de Kubrick. Mas – podem guardar as armas, fãs de 2001! – não preferi. Se 2001 teve os seus problemas, então 2010 também tem. Não são os mesmos, mas são problemas. E estes só permitem que eu ache 2010, no máximo, tão bom quanto 2010. Não melhor! E é nestes problemas que me pretendo focar agora. Falemos, então, de 2010, até porque eu não sou muito fã de comentários que falem tanto de um assunto que acabem por falar pouco ou nada do filme em questão (Toy Story 3, alguém?). Ah, falta ainda um pormenor relevante: eu li o livro em que o filme de Hyams foi baseado. E não li o livro em que o filme de Kubrick foi baseado. É, esta análise vai ficar uma salada...espero que ao menos seja uma boa salada!
Ora bem, o filme começa mais que bem, com uma espécie de relatório dos feitos da nossa conhecida Discovery. Esse relatório é-nos apresentado de forma charmosa e misteriosa, lembrando-nos todas as perguntas a que o filme pode vir a responder. A reutilização da clássica música de 2001 dá também uma agradável sensação de continuidade. Seguem-se algumas cenas que o livro não explora tão aprofundadamente: os antecedentes da viagem da nave Leonov. São cerca de 20-25 minutos que passam bem, até que a parte mais importante do filme – a viagem – começa. Entretanto, ainda tive tempo de estranhar um pormenor: o dr. Chandra. Sem querer ser inflexível, o dr. Chandra, aqui, não é indiano, como no livro. E mesmo considerando que Bob Balaban até fez um bom trabalho, diria que faltou um pouco de carisma e transmissão da sensação de que Chandra, mesmo sendo um homem muito sábio, tem o seu quê de excêntrico. Bem...pelo menos, a presença de SAL 9000 é marcante. Muito interessante ver um irmão de HAL com uma voz assim.
Voltando...quando o dr. Heywood Floyd acorda a caminho de Júpiter, a história ganha um sabor diferente. Todavia, creio que passado pouco tempo já se nota um dos problemas do filme, que se agravará com o passar do tempo. Mais concretamente, a direcção do filme. Peter Hyams parece ter optado por uma montagem estranha que ora torna o filme lento ora acelerado. É verdade; algumas transposições entre planos custam a passar, e outras são demasiados bruscas. E optar por uma montagem acelerada é muitas vezes um erro que pode piorar muitos filmes (Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças é um bom exemplo). E já que falei nos planos...os planos de câmara deste filme, na sua maioria, não são felizes. Um dos melhores exemplos é a cena em que Floyd e a capitã Tanya discutem sobre a possibilidade de voltar à Terra mais cedo. Grande parte da discussão é mostrada através de um só plano, todo ele pouco feliz. Se este fosse um moderno filme de Hollywood, a filmagem aqui seria, provavelmente (e acertadamente, diga-se de passagem) polvilhada com planos do rosto dos actores. Em 2010, grande parte é só um plano de um compartimento da Leonov onde as personagens dialogam. É certo que nem todos os filmes devem ser como os filmes modernos de Hollywood...mas muitos parecem esquecer-se que os planos destes têm razões para existir. No caso das discussões, os planos alternados entre as caras das duas personagens permitem 1) A sensação de diálogo e 2) A visão de como as personagens reagem aos argumentos um do outro. E no caso dos astronautas, com o seu habitual sobressalto contido, seria positivo filmar as suas reacções, também para constatar a seriedade com que debatem. Mas Hyams não os filma assim. Ficamos com o tal plano do compartimento da Leonov. Que está escuro. O que dificulta ainda mais a visão das caras dos astronautas.
2010 fez também uma escolha polémica em comparação com o livro. A saber: o livro apresenta-nos uma personagem – que acaba por ser pouco desenvolvida – chamada Zenia, a substituta da astronauta Irina Yakumina. Tanto no livro como no filme, Zenia tem direito a pouco mais de uma cena. Zenia acaba por ser uma personagem marcante, pois é responsável pela cena em que mais nos lembram que os astronautas, apesar de profissionais, também são humanos. Isto porque Zenia procura “abrigo” para o medo no compartimento de Floyd. Mas há uma diferença fulcral: no livro, Arthur C. Clarke explicita que não há qualquer tentativa de infidelidade por parte de Floyd. Clarke escreve até que o seu abraço se tornou “absolutamente casto”. E convém esclarecer isso, porque as perturbações do casamento entre Floyd e a sua mulher Caroline nunca se tornam mais importantes que a viagem. A proximidade momentânea entre Floyd e Zenia jamais é responsável pela “separação” de Floyd e da sua mulher. Agora no filme...bem, vejamos. Para começar, Zenia, não aparece como Zenia; aparece como Irina, a astronauta “original” da tripulação da Leonov. Como sabemos que Zenia foi “transformada” em Irina? Simples: Irina faz no filme quase o mesmo que Zenia faz no livro. Pouca coisa, portanto! Tem aquela cena de proximidade com Floyd e depois quase nos esquecemos que ela está lá. Adiante...na tal cena de proximidade entre Zenia – perdão, Irina – e Floyd, o que faz o filme? Corta um pouco as falas (que já são poucas) e acrescenta no final o pormenor de um carinhoso beijo que Irina/Zenia dá a Floyd. Ah, e acrescenta, após esse carinho, um sorriso de Floyd. E tudo isso não ajuda. Assim feita, e tendo tão pouca relação com o que se passa em seguida, a cena parece um indício de que Floyd e Irina/Zenia se vão apaixonar um pelo outro, levando à separação dele e de Caroline. Separação que acontece no livro. Mas nada do restante acontece, tal como no livro. Ao acrescentar a beleza de Natasha Shneider, o carinho que ela troca com Floyd e o desnecessário sorriso maroto de Floyd, a cena é quase absurda: dá pistas para acontecimentos que não vão acontecer! Aqui, seria útil uma narração que explicasse que não foi com a infidelidade na mente que Floyd fez o que fez. Mas a única voz-off deste filme é feita por Floyd quando fala com Caroline. E, realmente, não seria boa ideia contar-lhe este episódio. Só criaria desconfiança desnecessária.
Note-se que, nesta fase do filme ainda só apontei problemas. Não é que não haja qualidades, mas diria que o meio do filme traz mais problemas que qualidades. Avancemos...mais tarde,os astronautas fazem então a “abordagem” à Discovery. Embora essa seja bastante fiel ao livro, há algo em 2010 que incomoda e se nota mais nesta cena. É o seguinte: os astronautas não parecem astronautas! Sabem, durante a abordagem à Discovery, alguém pergunta como se diz “medroso” em russo (na verdade, na versão inglesa, a palavra não é literalmente “medroso”, mas sim “chicken”. Como todos devemos saber, “chicken” é a maneira de os ingleses dizerem “covarde”). Um russo responde: kuritsa (que significa “galinha” – chicken, pois então – e não “medroso”. O russo, naturalmente, traduziu à letra. Mas isto é só um aparte). Pois bem, os astronautas deste filme, no geral, são uns kuritsa! Veja-se o caso de Max Brailovsky quando sente um cheiro estranho na Discovery. A cara que ele faz não é de apreensão ou surpresa – que seriam naturais num astronauta – mas de pânico total e quase caricatural! Isso já é difícil de engolir. É assim, eu posso aceitar que alguns astronautas, com as suas caras “comuns”, pareçam mais canalizadores ou pedreiros (nada contra as duas profissões, note-se; não as acho menos merecedoras que a profissão de astronauta). Afinal, não se pode dizer que alguém tenha “cara de astronauta”. Agora, aceitar que estes astronautas sejam tão kuritsa é estranho demais! Isto é uma questão de lógica: devido ao perigo e à responsabilidade que trás a sua profissão, os astronautas têm de ter nervos de aço. E compreensível que Irina/Zenia – e outros astronautas – tenha(m) sentido mais medo aquando da tentativa de entrar na órbita de Io, pois essa era uma manobra perigosa e até aí nunca tentada. Mas é inacreditável o medo de Brailovsky durante a tal abordagem! É, este medo excessivo torna as personagens menos credíveis e muito menos bacanas.
E assim avançamos pelo filme, passando por planos de câmara menos bons e astronautas kuritsa. Felizmente, pelo meio, há cenas mais felizes, como a da aparição de Dave Bowman, que restaura a magia de 2001, desta vez mais justificada. E tudo melhora a partir da boa cena que envolve a “despedida” de HAL. Embora o livro seja bom a criar o ambiente dessa cena, o filme torna-a melhor e mais emocionante. E o silêncio de HAL quando o dr. Chandra diz a fatídica frase é arrepiante e comovente. À parte disso, após esta cena, já não sobra muito filme. Mas o que sobra é bom. Podemos dizer que os momentos finais do filme melhoram o conjunto. E acho que acertaram em optar por um epílogo inspirado no livro. Claro que o epílogo escolhido não foi o epílogo do livro, mas sim uma versão do seu capítulo final, digamos assim. Mas é bom haver epílogo. Este é resumido, mas bom e com imagens fascinantes.
Ainda sobre o epílogo...este, a meu ver, é importante para distinguir 2010 de 2001. Se 2001 termina com um dos finais menos conclusivos de sempre, 2010 ao menos encerra a sua história. Claro que 2010 também suscita perguntas. Aliás, tal como no livro, só uns 30% das perguntas são respondidas – nomeadamente as que têm a ver com HAL e com a sua psicose. Mas, ao menos, responde a algumas perguntas. E termina relativamente bem, em vez de fazer como Kubrick que, sem contar com as suas bizarrices, nem sequer mostrou Dave a sair da nave para examinar o monólito. Mostrou apenas uma porta a abrir e uma nave que não se percebe para onde se dirige. Neste ponto, 2010 é mais o meu tipo de filme que 2001.
No fim de contas, 2010 não é melhor que 2001; é, quando muito, igualmente bom. Cada um tem as suas qualidades e problemas, é claro. Se um é explicação, outro é charme. Se um é direcção fraca, outro é bizarrice. E, tirando 2001 da conversa, 2010 é um filme bastante fiel ao livro que acertou em várias coisas (como o regresso de alguns sons nossos conhecidos), mas cuja transposição para a tela não correu da melhor forma. E também um filme que começa bem, continua mal e termina bem.
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