Viver no mundo da realidade é uma tarefa árdua. É algo que não temos o menor controle e nos é impossível voltar atrás para corrigir erros ou ter feito diferente, simplesmente vivemos errando e aprendendo, por mais difícil que seja. Então, começamos a sonhar, num mundo totalmente nosso de ilusões e desejos a respeito de tudo o que nos rodeia. A realidade fica mais aceitável, a vida fica menos difícil e mergulhamos num mundo particular que cabe inteiramente em nossas decisões. Num mundo dividido entre a realidade e o imaginário, a vida parece finalmente se aproximar do ideal, principalmente para Federico Fellini. Uma das grandes lendas do cinema italiano e dotado de um estilo único, o diretor alcançou seu auge fílmico apoiado principalmente nessa mistura de real e sonho, realizando grandes obras-primas em sua carreira ao explorar tal misto, porém a maior de todas, a de grande repercussão e pela qual será sempre lembrado é justamente aquela em que refletiu partes de si mesmo, como uma autobiografia ilustre e bastante mentirosa, fato que só a aumenta.
Fruto da imensa inspiração do diretor em sua melhor fase, “Oito e meio” é um marco no cinema mundial sessentista por seu exímio capricho em fazer da arte o seu maior benefício. Tudo é desenvolvido com plena maestria, seja a trilha sonora que se encaixa completamente no ritmo extasiante, seja a direção primorosa de Fellini em expressar suas emoções, partes de sua vida e usufruir das características italianas de uma forma tão peculiar e admirável que é impossível não se surpreender pela paixão do diretor em fazer filmes. Além de uma exuberância técnica e artística, a obra possui um roteiro fulgurante, digno dos melhores devaneios do diretor, que em tela se transformam em passagens memoráveis. Tudo no filme é o perfeito espelho da inspiração do diretor que chega em seu auge, recordando memórias pessoais, incrementando fantasias e tornando aquela loucura italiana uma viajem única em sua cabeça genial.
Primeiramente, o que dizer das mulheres de Fellini? Estereotipadas e até podem ser definidas de primeira vista, mas são extremamente vivas, elegantes, maquiadas, sensuais, intensas, uma verdadeira celebração alegre da feminilidade, uma fonte interminável de inspiração para seu autor. Elas são tão energéticas e únicas que chega um momento onde, não tendo mais controle sobre as diferentes personalidades e euforias que o cercam, Guido dá chicotadas naquelas fêmeas ferozes num dos momentos mais antológicos de seu filme. É magnífico como cada uma de suas semideusas possuem um espaço digno na obra, todas entram e saem no momento certo e encaminham a história para novos horizontes e significados, mesmo que as maiores atenções caiam sobre o trio máximo de admiração do protagonista, feito pela amante, a esposa e a musa.
Aliás, os eixos da história rodam essencialmente pela relação de Guido e suas damas, o que nos revela um dos pontos mais debatidos da obra: os relacionamentos. A primeira mulher ao entrar no palco da mente de Guido é Carla, sua extravagante e simpática amante, passando o tempo com ela para se divertir com todas as frivolidades, mas não a leva tão a sério. Logo depois das aparições rápidas de sua mãe e de Saraguina, quem é iluminada pelos holofotes é Luisa, sua esposa, com quem se desentende freqüentemente e mantém uma relação de amor e ódio, até desejando em um de seus devaneios que ela seja bondosa e submissa a ele devido ao grande desgaste que ela causa na vida real. A última a receber um estrondoso destaque é Claudia, sua musa inspiradora, o modelo ideal de mulher, mas que nunca se aproxima de maneira a se tornar muito íntima, mantendo seu patamar de sonho inalcançável. Dentre amores e despedidas, Guido vai sendo levado e nunca se fixa com alguma delas, talvez por que ele não saiba amar de verdade, segundo a concepção de Claudia. O fato é que cada uma delas, em maior ou menor intensidade, são fundamentais no desenvolvimento de tudo.
O mundo de Fellini, apesar de glorificar inestimavelmente suas deusas, não se resume a apenas isso. Abordando diversos temas de formas diferentes, o diretor dá espaço para discussões em volta da arte, religião e vida como um todo. Primeiramente, o filme já começa dando gás a essa veia artística e seu conteúdo pulsante, com Guido preso dentro de um carro como se estivesse preso a sua vida real e aos seus problemas, incapacitando sua imaginação e liberdade narrativa se seguirem adiante, usando da crise criativa do protagonista como combustível para o andamento da trama. Todos os devaneios e loucuras dos personagens e da história em si constroem o que há de mais belo na arte: retratar a realidade com total liberdade de criação e tornar a vida num sonho interminável, o que na verdade mostra toda a essência das artes no geral, a de entender o universo em sua plenitude, ou pelo menos tentar.
Não sendo vista de maus olhos, a religião é tratada de uma maneira adulta e nunca ofensiva, mas talvez como um dos principais causadores do bloqueio criativo do protagonista. Vemos que desde a sua infância, ele sofreu repressão e teve de se adequar aos limites que sua religião o impunha, o que fica claro quando retratada a cena onde Saraguina, a prostituta com insinuações eróticas, dança extasiada para o garoto e logo após os padres o repreendem pelo que fez, dizendo que tal mulher seria um tipo de demônio. Parte de sua expressão artística vem da própria sensualidade das mulheres, o que prejudica seus mundos se expandirem conforme vai amadurecendo, o que também se revela em outras artes distintas, a religião acabar atrapalhando os homens sendo que ela é um próprio artifício utilizado por eles para definirem suas crenças e ensinamentos superiores, algo meio contraditório.
Entre inspirações e reflexões, Fellini acabou por criar uma das grandes obras-primas italianas do cinema, colocando a arte em celebração da vida, das mulheres e da liberdade de expressão. Marcando também uma grande inovação na história do cinema, por fazer parte do movimento modernista que atingiu a sétima arte apresentando imagens distorcidas, narrativa não-linear, outros diferentes focos de câmera, entre outras características presentes, mas não rompendo totalmente com a estrutura clássica, a obra demonstra imensa importância justamente por essa visão fellinista de um cinema a ponto de se modernizar. Por fim, um filme completamente imortal por mostrar que o melhor artista é aquele que faz da sua vida, uma arte.
“A vida é um circo”
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