HIGHWAY EM MISE EN ABYME
Acredito que nos dias de hoje, onde os milhões de feeds de notícias invadem nossa timeline, onde ao caminhar na rua a quantidade de informações sonoras e visuais sucumbem nosso cérebro e nos forçam a decodificar e ressignificar tudo em milésimos de segundos, talvez sejam as provas de que o cinema de David Lynch seja tão real quanto um plano sequência geral de Tarkovski.
Lynch não se abstém a causa+efeito na concatenação dos planos como nos tentou ensinar Eisenstein, e muito menos em André Bazin com sua fidelidade a paisagem e temporalidade “real”, aliás, penso que daria “pano pra manga” comparar Bazin com David Lynch, já que o teórico francês nunca pensaria que o inconsciente também pudesse ser real, e cito Lynch nesse embate e não Buñuel ou Dali exponentes do surrealismo, porque o surrealismo do diretor estadunidense já vem embebido em outras formas, mais contemporâneas, com influências outras, o sonho aqui em Estrada Perdida permanece, ou apenas confunde-se com mais um delírio do diretor.
Em Estrada perdida (1997) como quase todos os filmes de Lynch, participamos e observamos como num sonho, mas não temos acesso a ele, estamos alheios e não podemos interferir ou manipulá-lo. E é assim, com a visão imputada em sua câmera onipresente, que vemos Fred (Bill Pulman) e Rene (Patricia Arquette) em uma crise no relacionamento, Fred sente sua esposa ausente como num sonho que o mesmo teve recentemente com ela. Fred não consegue lidar com esse sentimento que lhe é familiar, e encara uma trama em busca de respostas para este sentimento e a dor que ele o causa. Materialização do existencial? - Bem, Lynch e o seu cinema vão além de uma crise existencial dos seus personagens, o diretor que em Eraserhead (1977) explicita a vontade de expor o difícil que em sua vida pessoal foi encarar o nascimento de um filho com uma doença, em Mulholland drive dá uma indireta à indústria cinematográfica em paralelo a uma possível história de rejeição no star system, em Lost Highway o que nos é dado é uma história encaracolada de ciúmes, encaracolada como a escada da entrada da casa de Fred e Rene, que não mudando de assunto, me fez lembrar muito a escada e a casa sonhados por Maya Deren em “Meshes of the Afternoon” (1943), pura coincidência talvez. Mas enfim, sobrepondo o surrealismo existente, seja ele pelas inúmeras referências e símbolos colocados por Lynch, seja pela montagem não concatenada linearmente que faz com que você se confunda com os plots, mas que no fim você vê que eles podem ser o mesmo, ou então por uma luz proposital artificial quente estourando na cara do personagem para ressaltar um ciúme desacerbado, ou melhor; com uma trilha musical diegética e extradiegética, onde a fonte já foi reconhecida em algum ponto da narrativa ou ainda será, como num sonho, ou uma lembrança, falar do som em Lynch também não seria fácil, lembrando que o mesmo faz um cinema de ambiência, onde chega a gravar cenas com a trilha musical “rolando” no set. Enfim, para além ao ressalte do surrealismo com o sonho, Lynch nos arremessa além, numa Mise em Abyme que pra narratologia seria uma narrativa dentro de outra narrativa, ou no cinema, um quadro dentro de outro, o que não se reserva a um sonho, mas no qual também pode ser empregado.
E desta forma em Estrada perdida, somos postos em caixas, uma dentro da outra, e o propósito não é criar diferentes pontos de vistas como em Elephant de Gus Van Sant, mas submeter universos paralelos a uma mesma história, em que o mesmo sentimento, a mesma angustia está sendo vivida igualmente por pessoas diferentes, e isso as iguá-la. Aqui, o ciúmes.
E é com este ciúmes que o diretor se supera, resguardado pela estética do surrealismo, seu personagem Fred e logo após o Pete conseguem quebrar com o que Lacan disse na psicanálise da necessidade de dividir o complexo de édipo entre neurose, psicose e perversão e analisá-los separadamente sempre. Lynch sabe como um sujeito em seus sonhos vive de confusão causada por lembranças e criações do inconsciente, e em Estrada perdida seus dois personagens quebram com isso totalmente ao passar pelos vários estados: de neurose, quando Fred sente que já havia sentido aquele mesmo sentimento, da psicose quando não se sabe de onde as videotapes estão vindo e quem seria este que persegue o casal, à perversão, onde o sujeito se subverte na medida em que ele não tem acesso ao gozo pleno, ou seja, o sujeito é por isso, castrado. E é no sacrifício que o sujeito tenta subverter essa castração, levando o sujeito a perversão. Perversão aqui é o assassinato frio, sem culpas.
Viver com o sentimento da ausência da esposa estando ela presente, e tê-la duplicada com outra identidade num final, em que a própria diz não pertencer ao personagem, é explicitar ao máximo a angústia citada por Lacan de sujeitos que sofrem de neurose e psicose, mas nunca em sujeitos que sofrem de perversão. Perversos não são afetados como os demais que ao saberem que sua amada poderia ter outros casos se angustiaram, sofreram, os perversos não se deixam abalar e apelam sempre para o sacrifício, e o sacrifício aqui é a morte da esposa de Fred, como normalidade, sem culpas e sem lembranças.
A esposa com uma gêmea, ou apenas duplicada, nos mostra que apesar de utilizar nomes diferentes, ela sempre será a mesma pessoa, sendo assim, é a partir deste duplo que vemos o quanto a identidade dos personagens não conta e sim suas singularidades, desta forma, independente da temporalidade, da espacialidade e das características físicas, eles seriam os mesmos, ligados pelo mesmo inconsciente, impulsionados pelos mesmos sentimentos.
O universo Lynchiano é assim, consegue a unidade depois de um perigoso e traiçoeiro caminho percorrido pela narrativa, não pra mostrar o quão complexa é a contemporaneidade e nossas cabeças, mas sim, o quão subjetiva é, e apesar da subjetividade, um fio, de que sempre há um ponto de ligação em todo o quebra-cabeça, aquela última boneca russa pra abrir, a do autoconhecimento.
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