Uma obra-prima. É direto e reto, assim mesmo, que decidi começar este texto sobre “A ESTRADA”, de John Hillcoat, baseado no livro de Cormac McCarthy. Tentei a todo custo não soar presunçoso ou exagerado, mas não tive como evitar. Considerando toda a linguagem por trás da narrativa, além de todo preciosismo técnico, torna-se inevitável afirmar que A ESTRADA é, sim, uma obra-prima, além de ser um dos filmes mais belos e impactantes desse início de século.
Por quê?
Um pai e seu filho viajam solitários por uma Terra devastada. Não há nenhuma explicação para a catástrofe. Não possuem nada além de um carrinho de supermercado com alguns cobertores puídos, pouquíssima comida, um isqueiro que, por sorte, ainda funciona e um revolver com duas balas. Eles precisam chegar ao litoral e de lá partirem para o sul, para que tenham alguma chance de sobreviver o próximo inverno. No caminho, eles se deparam com cidades abandonadas, incêndios, bosques cobertos de cinzas, mas continuam. É a comovente jornada do pai e de seu filho, “cada um o mundo inteiro do outro”.
Apresentando um mundo descolorido e extremamente hostil, o diretor John Hillcoat não se restringe em nenhum momento com a possibilidade de “ultrapassar o limite”, apostando, junto com a soberba fotografia de Javier Aguirresarobe, em um tom completamente desprovido de esperança, e é emocionante observar como o filho se sente indiferente ante a possibilidade de desenhar com cores quentes em um pedaço de papel, já que está muito mais acostumado com o cinza do mundo real. Igualmente importante é testemunhar, na mesma cena dos desenhos, a maravilhosa rima visual que as cores, principalmente o amarelo, fazem com os riachos que os dois encontram pelo caminho: se o pedaço amassado papel empalidece aquilo que, nas lembranças do pai, possui força e beleza, as águas poluídas encontradas pelo caminho são muito mais próximas da referencia visual que a criança possui, fazendo com que o calor dessas cores seja drenado impiedosamente pelo mundo ao redor.
O design de produção e os figurinos de Chris Kennedy e Margot Wilson, respectivamente, recebem a difícil tarefa, graças mais uma vez à total ausência de cores, de abordar pontos importantes da personalidade de cada um dos membros do elenco. Temos desde o gradual clareamento das roupas dos protagonistas – seus agasalhos são escuros, mas suas roupas de baixo são mais claras – afinal eles ainda carregam “a chama”, até a total ausência de vida nas peças improvisadas do personagem de Robert Duvall que, quase cego, não consegue mais viver, apenas sobrevive. E a maquiagem impressiona por pontuar a degradação física que todos estão passando, desde o rosto quase irreconhecível de Robert Duvall, até a palidez gradual do pai, passando pelos figurantes de uma cena de horror absoluto que ocorre em um porão.
Vivendo o pai com uma entrega absolutamente fantástica, Viggo Mortensen não hesita em mudar radicalmente sua forma física, emagrecendo ao ponto de causar preocupação. Mas apenas emagrecer não é o principal mérito de sua performance. Mortensen quase que desaparece ao dar vida ao personagem, optando por um tom de voz rouco, quase inaudível, além de pontuar a degradação física do pai (e sua escolha de deixar a barba e cabelos compridos é clara – e sábia – opção de remeter à imagem de Jesus Cristo). Igualmente forte é a presença de Codi Smit-Mcphee que dá veracidade e inocência ao filho, empatando em intensidade com seu colega de cena. Além de possuir a ponta maravilhosa de Robert Duvall (sutil e soberbo!), o filme ainda conta com Guy Pearce, Molly Parker, Garret Dillahunt, Michael Kenneth Williams e Charlize Theron em participações magníficas (principalmente de Theron).
Mas falar do filme implica em falar de sua mensagem. Cormac McCarthy é conhecido por ser um dos melhores escritores vivos dos EUA, e suas obras serem povoadas por pessoas amargas, duras e, por vezes, violentas. Obras como “Onde os Velhos Não Têm Vez” (adaptada para o cinema pelos irmãos Coen), a “Trilogia da Fronteira” (composta por “Todos os Belos Cavalos”, “A Travessia” e “Cidades da Planície”) e o visceral “Meridiano de Sangue” são, em sua essência, compêndios sobre a alma humana, além de dialogarem perfeitamente com a atmosfera do Antigo Testamento. Homens, mulheres e até crianças, dotados de um código de honra implacável, capazes dos atos de mais pura maldade, mas também de inesperados feitos benéficos, essas criaturas – esses fantasmas – são o mais perfeito reflexo da alma humana: não apenas adotando uma ou duas características ou arquétipos, mas sim reunindo em cada um todos (ou quase todos) os signos possíveis, tornando-as palpáveis, reais.
E em A ESTRADA, essas criaturas são ainda mais aprofundadas. Tomemos o pai, por exemplo: se em uma interpretação podemos associá-lo a Jesus Cristo, que luta e se sacrifica pela humanidade (o filho), logo nos deparamos, atordoados, com atitudes que não condizem nem um pouco com a referência que temos do Salvador, como ao cruelmente forçar um personagem a despir-se para que morra de frio, num claro ato de vingança (um óbvio reflexo dos extremos que as religiões podem chegar); ou ainda poderemos associá-lo ao próprio mundo que, agora invertendo o jogo, faz com que Deus (o filho, em uma resignificação de sua imagem) seja a figura ingênua que nada sabe sobre a complexidade do homem, tornando-O uma criação humana, quase uma desculpa, para que a “chama” do mundo não se apague, e é maravilhoso constatar a beleza visual dos planos em que pai e filho observam as terríveis forças da Natureza em ação (o incêndio, a queda das árvores secas e a imponente cachoeira), mostrando que algo maior está agindo, mas não necessariamente em nosso favor. Além de claras referências bíblicas – o único personagem que tem um nome é “Elias” e é o primeiro a reconhecer no menino um “anjo” (na Bíblia, Elias é precursor de Jesus), o filme apresenta belas rimas visuais, como o já citado exemplo das cores, mas também a gradual (e sutil) presença de animais – de insetos mortos que servem de refeição, eles encontram um pequeno besouro, além da insistência do menino em dizer que ouve, ao longe, um cachorro.
A cada cena se reinventando tematicamente, além de proporcionar uma infinidade de imagens que provocariam infindáveis discussões filosóficas apenas por suas escolhas estéticas, John Hillcoat e sua equipe fazem de A ESTRADA um exemplo do que o cinema pode apresentar de mais belo, mesmo que seu tema seja terrivelmente angustiante. E ao final do filme (raras vezes isso acontece) nos damos conta de estarmos agradecendo por voltarmos à nossa realidade que, por mais cruel que seja, não chega aos pés do que esse pai e esse filho precisam enfrentar. Sim, OBRA-PRIMA!
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