Na filmografia de Pedro Almodóvar as famosas características de seu cinema sempre estiveram em voga em todas as suas obras, embora sempre possamos distinguir os de comédia maluca e os dramalhões almodovarianos. "A Lei do Desejo", assim como outros filmes do diretor, dão a impressão de não estar nem aqui, nem lá. Não tratasse por exemplo de um "Fale Com Ela" em que o drama prevalece, nem de um "Pepi, Luci y Bom" onde a espalhafatosidade reina. É um meio-termo que faz bem ao filme, carregado do kitsch dos anos 1980. Para uns, lixo cinematográfico; para outros, um amalucado filme de transgressão que se torna ainda maior por ser o primeiro filme da então recém-criada El Deseo S.A., a empresa de Almodóvar, produtora de obras-primas como "Tudo Sobre Minha Mãe" e "Fale Com Ela".
Há neste, além da dramédia, o flerte com o gênero policial, mas nada que dê face ao filme, pois as investigações policiais que se desenrolam são um mero pretexto para empurrar os personagens a um desenlace carnal, algo arquitetado e conduzido com leveza e sarcasmo por Almodóvar. O desenvolvimento a partir da investigação torna-se mais cômico e surreal do que um verdadeiro "quem matou quem", que não importa mais do que ocorre na cama de Tina Quintero (Carmen Maura).
Nada no filme é convencional e sério demais, a ponto de se tomar como verdade o que se passa na tela. Almodóvar instigaria seus personagens a destinos malucos em outros filmes, mas da maneira despretensiosa e ao mesmo tempo narcisista como neste, não. Em outros títulos "mais sérios", quase nada derrapa, quase nada fica solto. Mas aqui não há o interesse pela verossimilhança. Há o interresse, sim, mas nos resquícios da Movida Madrileña, no desatar das convencionalidades e facilidades, em contrapropor.
Personagens inspiradíssimos dão um charme especial ao filme e fazem parte desse contrassenso. Sempre estão todos com um calor infernal na escaldante Madri. Hora e outra um deles reclama das altas temperaturas. Seria Madri mesmo ou o apimentado filme se reservaria tal papel, com todos ardendo de desejo? A personagem Ada (Manuela Velasco) reserva algumas "surpresas" quanto a isso, com sua sexualidade aflorada. "Uh-lala" dirá em certo momento quando lançada ao seu objeto de desejo.
No entanto, o destaque interpretativo fica mesmo a cargo de uma antiga colaboradora de Almodóvar, Carmen Maura, que se empresta para uma personagem no mínimo incomum para uma mulher. A atriz transita pela comédia, pedindo emprego e dinheiro em frente a uma Nossa Senhora dos Almodóvares, junto a Ada que em outro momento pede ressurreição de um morto. Além disso, a personagem de Maura tem que, hora e outra, dar de cara com seu passado nebuloso e trágico e nesses momentos explode dizendo "los unicos que tengo", referindo-se às lembranças.
O interessante desejo de Almodóvar pela teatralidade trágica em seus filmes também é um ponto-chave. A inserção de "A Voz Humana", adaptada por Pablo Quintero (Eusebio Poncela) na trama, satisfaz essa vontade do diretor que voltaria a usar o texto de Jean Cocteau em "Mulheres à Beira de Um Ataque de Nervos", mas dessa vez como cerne do movimento tramático. Como nesse filme, A Lei do Desejo, não fica somente em adaptação de texto teatral dentro do filme mas também associa-se a uma peça, mesmo que leve e loucamente. No caso, uma tragédia grega associada à tragédia almodovariana (o caso de Tina: um Electra kitsch gay?).
Além disso, o fazer cinematográfico que marca outros filmes do diretor como "Má Educação" e "Abraços Partidos" é usado como impulso à obra que se mantém no campo da metalinguagem desde o início da projeção. Almodóvar utiliza Pablo Quintero como veículo para repassar sua visão de cinema, com a vida influenciando a arte e vice-versa.
A utilização de uma trilha sonora de peso, com a qual os personagens se enroscam nus, ao som da cantora Maysa, é, também, no mínimo inebriante. Além, claro, pelo fato de a trilha em A Lei do Desejo servir como reforço de trama, na qual o que se passa é quase narrado por boleros como "Lo Dudo". Mas do que isso é ver o louco amor de Antonio Benítez (Antonio Banderas) por Pablo Quintero, irmão de Tina, ser correspondido em frente a uma cruz de maio ao som do cantor homossexual Bola de Nieve (o mesmo que canta Ay Amor! em "A Flor do Meu Segredo"). Só Almodóvar mesmo.
No final, qual seria a lei do desejo? É aí que Almodóvar contradiz o próprio título de seu filme. O desejo, produto dos mais profundos impulsos humanos, não admite racionalidade e, por isso, tudo o que se faz em seu nome está para além do explicável, para além de qualquer lei.
A Lei do Desejo é um filme de erros, acertos, de uma visão crua e sem concessões. Mas acima de tudo é a película que marca o jeito Almodóvar de filmar, associando sexo, dramas familiares, cinema e ne me quitte pas. É um filme sem-lei.
Comentários (0)
Faça login para comentar.
Responder Comentário