Leonardo Padura, em uma pequena reportagem a Folha de São Paulo (em 12/4/2014) escrevera: "Da república socialista da Bulgária, costumavam chegar a Cuba, por décadas, latas de repolho recheado com arroz, perfumes de rosas, potes de geleia de ameixa, e muitas notícias sobre o progresso social e econômico do país. (..)Sobre a Bulgária nos diziam que havia sido uma nação muito pobre, mas que estava em vias de desenvolvimento e prosperidade, graças ao sistema socialista lá vigente." Esta é certamente uma ótima introdução a história deste pequeno país que, de um passado medieval de glórias contra os bizantinos e os romanos, adentrou em um ferrenho regime soviético e depois disso nunca ninguém mais ouviu falar. Há divergências entre estudiosos se o forte comunismo ou se um capitalismo torto que jogaram o país nas cinzas (há consenso de que ambos), ao ponto de hoje ser o mais pobre da Europa. Lá pelas tantas, o jornalista pergunta-se "afinal, a Bulgária existe?", existe, mas a que ponto?
Não é difícil perceber em A Lição (Урок, 2014) o cenário de uma cidade pequena no país: prédios cinzentos e feios, estradas esburacadas e uma máfia que toma conta de assuntos burocráticos (essa sim, a grande herança soviética). Para nós brasileiros, ao menos para mim, é estranho ver as crianças alunas da professora Nadezhda (Margita Gosheva) apagar o quadro com uma esponja e água, me pergunto se isso é simplesmente cultural ou se demonstra um problema mais grave da estrutura do país. Séria e compromissada, logo ao início seco do filme já vemos que a sua demonstração da realidade não é tão calorosa quanto a de filmes principalmente norte-americanos, onde um bom professor consegue modificar os alunos, as pessoas e a estrutura ao seu redor, sempre em busca de um objetivo final: a educação plena de seus comandados. É praticamente um neorealismo do século XXI feito no Leste da Europa, como sempre foi da tradição de poloneses, magiares, ucranianos..
Não que filmes com bons professores contra todas as adversidades imaginadas sejam ruins, é que simplesmente A Lição não é um deles. Aqui a professora sofre um processo de reeducação, uma inversão de valores ou como ela mesma diz: "Às vezes há coisas na vida que são estranhas e não sabemos explicar", porque se ao clarear da tela vemos ela justificando a justiça, a honra e a honestidade, quando as mesmas se apagam, algo mudou, e ela compreende o que o dinheiro, e consequentemente as necessidades humanas, levam as pessoas a fazer, como levam a agir.
Em nenhum momento Nadezhda se descontrola com sua filha ou com seu marido, o grande culpado da situação toda, ela tem um objetivo certo: fazer com que sua casa não seja leiloada. E para isso vai abandonar o carro, a escola, pegar um ônibus sem pagar, pedir dinheiro na rua, se humilhar a um mafioso e mesmo roubar dinheiro de uma fonte da praça local. Sua situação é desesperadora, e a cada vez que piora parecemos ver em seus olhos a lembrança de quem tanto julgou um aluno que teria roubado na sua sala de aula para.. comer.
O que se pode tirar da leitura do diretor Peter Valchanov e da diretora Kristina Grozeva é que somos todos iguais, mas passando necessidades somos mais e sem dinheiro somos ainda piores e claro, se pessoas trabalhadoras são colocadas numa situação assim, a culpa é do Estado impotente, ao ponto que criminaliza pessoas que acabam por criminalizar a sociedade em um dominó de consequências inimagináveis. Outro ponto interessante é quando a professora Nadezhda precisa dar uma nota 6 para um aluno que tirou 2, por troca de favores que a interessam, ela aumenta para 3 e assim por diante, depois irrita-se e dá um 6 para todos os alunos. É onde percebemos que o seu senso de justiça fala tão alto quanto o de sobrevivência, mostrando uma faceta resistente da personagem e uma complexidade imensa do próprio ser humano.
Mas onde Nadezhda e essa Bulgária contemporânea encontram-se? A antiga filha pródiga que fora especializar seus estudos na capital hoje é jogada para o lado por muitos, além de tudo escolheu o marido errado; assim seus erros vêm lhe buscar para pagar a conta que deveras deve, tal como uma nação que precisa rever seus erros para desfazer-se do marasmo em que está. Trata-se de uma sociedade extremamente burocrática, desumana e capitalizada, onde seus heróis serão aqueles que viverão o máximo de tempo errando menos, entregando-se menos. Testados até o final de suas forças, não é sobre fazer o certo ou o errado, é de conseguir chegar ao fim com um centavo de dignidade.
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