É impressionante como o diretor Yôjirô Takita e o roteirista Kundo Koyama conseguiram fazer um filme que fala sobre morte o tempo todo, que mostra corpos de mortos ao longo de seus 130 minutos, e é tão suave, doce. É denso, sério, mas nunca opressivo, pesado. Muito ao contrário: o espectador sai do filme leve, admirado, pacificado e um pouco diferente do que era antes de ver o filme.
Daigo (Masahiro Motoki) é um violoncelista que perde o emprego numa orquestra de Tóquio e decide voltar para o interior, ao lado da esposa, para a cidade onde cresceu. Lá, arruma um emprego que atrai o preconceito de muita gente. Daigo é encarregado de preparar os mortos para seus funerais.
Através do trabalho de servidor funerário, Daigo adquire outra percepção da vida. O trabalho, como não poderia deixar de ser, impregna sua vida. Na verdade, o trabalho de preparador de mortos implica outro sentido de morte. O simples gesto de preparar corpos pressupõe por exemplo, a crença no além-mundo com a partida sendo apenas a passagem para outra vida. Aliás o trabalho nesse caso, é um ritual significativo que implica toda uma cosmovisão tradicional que a modernidade burguesa com sua frieza corriqueira, aboliu e desencantou. Não se trata apenas de adequar corpos para a vigília do velório, mas ressignificar um corpo sem vida para os entes queridos que ficaram. Assim, o trabalho funerário de Daigo e Ikuei Sasaki seu patrão busca dar sentido vital à partida. Ora, em várias situações, o ritual de preparação dos corpos mortos altera as relações humanas dos entes queridos que ficaram.
Deste modo, mais importante do que a simbologia de preparar o morto para a além-vida (como uma leitura convencional poderia fazer), é preparar o morto para ressignificar a morte daquele ente querido que partiu, para aqueles que ficaram. Eis o sentido ontológico desta atividade profissional, afirmar a centralidade da vida e do trabalho como atividade vital para homens e mulheres vivos. O filme "A Partida" assim, não é um filme que trata de mortos, mas sim dos vivos. Portanto, o trabalho do preparador de defuntos no filme é quase que um mediador para novas percepções existenciais, levando alguns clientes a agradecer pelo ritual esclarecedor. O trabalho do ritual desvenda novas percepções não apenas de quem trabalha, mas das famílias do ente falecido.
Todos os personagens secundários que vão aparecer na história de Daigo e Mika são interessantes, bem construídos, de carne e osso de três dimensões: a secretária da agência, a velha senhora que mantém a casa de banhos apesar da oposição do filho funcionário público, que gostaria de vender o lugar, o senhor idoso que frequenta religiosamente a casa de banhos. O personagem do patrão de Daigo, Sasaki, é extraordinariamente rico. As atuações de todos os atores são ótimas; o ator que faz Daigo, Masahiro Motoki, tem um desempenho extraordinário, assim como Tsutomo Yamazaki que faz o patrão.
A trilha sonora é brilhante, marcante como seria mesmo de se esperar para um filme cujo protagonista é um musico que tem a consciência de não ter o talento necessário para viver de música. O autor da trilha é Joe Hisaishi, que trabalhou para mais de 70 filmes, inclusive vários de Takeshi Kitano, um dos mais conceituados diretores japoneses em atuação. Muitos alegaram que a trilha é muito melosa e tira a força da história, já eu a acho brilhante, aumentada nos momentos certos mais marcantes e mais amena quando a situação a requer dessa forma.
O filme reúne uma série de metáforas sobre a condição moderna. Primeiro, a narrativa fílmica trata de partidas e não apenas de uma só partida (como o titulo em português equivocadamente sugere). Por exemplo, temos não apenas a partida da vida para a morte, mas a partida de pais que abandonam filhos dissolvendo a família; a partida de instituições tradicionais abandonadas em virtude da voracidade da vida moderna (por exemplo, a casa de banho que será destruída após a morte de sua proprietária). E temos também, neste processo de modernização, a perda de percepções humanas primordiais que marcavam a sociabilidade originária; o avanço da modernidade implicou irremediavelmente a perda de crenças antigas com suas singelas significações.
Assim, muitas vezes, no vendaval da modernização, com o avanço do fetichismo da mercadoria esquecemos o sentido das coisas como, por exemplo, a significação das forma das pedras que na velha tradição japonesa, transmite modos de sentir e significações humanas candentes. Portanto, o filme "A Partida" nos diz que o processo de constituição da modernidade burguesa implica a constituição de um metabolismo social de partidas e danos, com toda dor e sofrimento que isto possa acarretar para as individualidades humano-pessoais.
"A Partida" levou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2009 e ainda levou dez prêmios da Academia Japonesa, inclusive os de filme, direção, roteiro, ator para Masahiro Motoki, ator coadjuvante para Tsutomo Yamazaki e fotografia para Takeshi Hamada. No total, o filme ganhou 32 prêmios mundo afora.
A partida é um processo simbólico de perdas e danos, lembrança e resignificação. Como já salientamos, no filme, o processo de preparação do morto, é, na verdade, um processo de resignificação para os entes queridos do verdadeiro sentido da vida. Naquele ritual fúnebre explicita-se a última mensagem daquele ente querido que partiu. É a última mensagem do morto elaborada (ou mediada) pelo trabalho dos agentes funerários. Os mortos, é claro, estão reduzidos ao mundo inorgânico tal como por exemplo uma pedra. A morte é um singelo fato biológico. Entretanto, como na antiga tradição japonesa (que resignifica as pedras), os mortos podem expressar, através do trabalho do ritual fúnebre (o processo do velório e da preparação do defunto), algo de valor para os entes queridos vivos.
O titulo do filme no Brasil – “A Partida” – é diferente do titulo em inglês – Departures (Partidas). O correto seria dizer "Partidas" e não "Partida". No original em japones, o título do filme é "Okuribito", que quer dizer Okuri = levar; Bito = pessoa. Assim, Okuribito é uma pessoa que leva outra a algum lugar. O diretor Yojiro Takita fez excelentes utilizações do convencionalismo de Hollywood. O filme é deveras cativante e emocionante, usando com notável habilidade o poder das imagens – fotografias e trilha musical – que envolvem com maestria o público. Além disso, o excelente desempenho dos atores e a qualidade do roteiro contribuem para o resultado final: tratar com lirismo e senso de humor um tema aparentemente tão mórbido.
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