Há algo que de certa forma surpreende em Abril Despedaçado, talvez a clareza com que o filme se assume, sem qualquer pudor, como fábula atemporal – isso surpreende e a alguns, certamente, incomoda. Talvez seja o caminho natural no percurso que seu realizador parece traçar para si, mas, natural ou não, há com certeza uma ruptura depois de filmes que, em tom maior ou menor, definiram-se sempre pelo seu tempo e por sua localidade. De toda forma, localizando-se em Riacho das Almas, onde, segundo o menino Pacú, acabou-se o riacho e só restaram as almas, o filme em nenhum momento esconde sua pretensão universalista. Talvez por isso seja tão elogiado por quem tem pudor de cinema brasileiro – e, por outro lado, seja eventualmente atacado por se assemelhar mais a um ‘filme para festivais’ que a um filme ‘brasileiro típico’, cometendo, crime dos crimes, o absurdo de emular o ‘brasileiro típico’ para ser entendido nos festivais! Sobretudo, tenta-se buscar no seu estilo narrativo um misto de secura e simplicidade bressonianos com os mais novelescos excessos melodramáticos, numa mistura irregular que, como se pode imaginar, é crítica – resultando da crise um produto ainda um pouco indefinível, talvez parecendo ser uma atualização bem-sucedida da Vera Cruz, talvez sendo uma estranha mistura de cinema novo e novela das oito. E que definição implicante poderia dar conta de um filme? Filme é filme!
Abril Despedaçado, enfim, é uma história simples, objetiva, seca e sem sutilezas – contada com o rigor que Walter Salles parecia buscar já em O Primeiro Dia. E, mesmo que seja ainda proximamente filiado às intenções narrativas e estéticas que seu realizador já demonstra nos seus filmes mais recentes – que talvez possam ser resumidas como um ideal, algo ingênuo talvez, de voltar, com apuro técnico e narrativa melodramática (herança das telenovelas, talvez até... dos festivais!), ao ideal cinemanovista de descobrir o país – , não se afasta em nenhum instante do propósito de definir uma regra moral a partir de uma situação trágica. É o tema da vingança de sangue e a repulsa a ela que justifica então o filme – justificará plenamente enquanto se assistir a situações semelhantes espalhadas pelo mundo afora, e é sempre bom agradecer à sorte quando não se tem presente uma situação tão sinistra no cotidiano imediato.
No filme, a sucessão de tragédias é iniciada pela disputa de terras entre duas famílias rivais. E uma camisa ao vento, manchada de sangue. Essa seria a marca de que se havia cumprido uma obrigação de vingança. Alguém morrera em retaliação. A partir de então, era esperar que o sangue amarelasse, para que outra obrigação se fizesse, para vingar o que morreu. Desse modo se perpetrava o ciclo interminável de violência e morte.
Tonho, o segundo filho da família Breves, deve vingar a morte de seu irmão mais velho, o que significa sua morte também, após uma costumeira e curta trégua. Não há opção possível. Ou mata, dispondo-se a perder a vida, ou se perde a honra de sua família. Tonho nada pode escolher, como seus antepassados, seus pais, seus irmãos, e seus rivais também não puderam. Não é possível ter ou saber os nomes, dar nomes, e ter história, porque a lei da disputa ancestral é soberana. A única história que pode ser contada é a história da vingança e da honra que deve ser resgatada. Não pode haver registro de outra história, ninguém pode se lembrar do que é querido, desejado. Pacu não se lembra de suas histórias sobre o mar, de que tanto gosta. Tonho não pode saber que deseja outros caminhos.
Essa é também a história das nossas próprias sagas internas. São as vendetas que sustentamos, entre os rivais que construímos, dentro de nós mesmos. Esses são os personagens que nos aprisionam, que refreiam as nossas possibilidades: o medo, a dúvida, a cegueira e a violência. Há que se encontrar algo densamente vivo e amoroso, que sobrevive além da morte e da ruína, para podermos escolher caminhos. Rumo a um encontro marcado internamente com nossos meninos – Pacus e Tonhos, para conhecermos um nosso lugar chamado Ventura...
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