Quando tudo está dentro dos padrões e em aparente calmaria, é sinal de que alguma coisa está errada. Uma falsa calmaria para um crescente movimento de mudanças. Situação essa tão comum no desenrolar da história da humanidade, também se encontra na história das artes, cheias de novas ondas ideológicas, movimentos e rejeição do pré-determinado. Foi assim que aconteceu o famoso movimento da Nouvelle Vague, uma redefinição do cinema em todas suas vertentes, iniciado na França e depois se espalhando pelo mundo. Um dos expoentes desse movimento foi a obra inicial de um dos realizadores de maior sucesso e genialidade de todo o desenrolar da história cinematográfica.
Tradicionalmente com as características de obras de estreia, “Acossado” é a pura efervescência da cinefilia e do inconformismo cultivado por anos pelo seu autor, que mais tarde viria a se tornar um dos maiores diretores da sétima arte. Antes escritor da revista francesa “Cahiers Du Cinéma”, fundada em 1951, campo impresso no qual cinéfilos e jornalistas podiam discutir abertamente sobre o mundo cinematográfico, realizar artigos e críticas a respeito dos filmes realizados até então, e sendo ela a porta-voz para as reflexões e expressões de ideias de seus autores, trazendo futuramente uma onda de novos e jovens diretores, Jean-Luc Godard se consagrou não só como um crítico brilhante e de opinião própria, mas também como um dos visionários que oficializariam uma nova linguagem à sétima arte.
Essa instauração de uma nova linguagem originou obras pertencentes ao movimento que se denominou Nouvelle Vague, talvez o movimento de maior relevância na história dessa arte. Expressando a insatisfação dos jovens e cinéfilos franceses com o status do cinema no período, dominado pelo comum, pela covardia, por fórmulas fáceis, raciocínios preguiçosos e passividade, a Nouvelle Vague foi um grito, uma determinação de toda uma nova forma de se fazer cinema, relevando-o novamente como arte e não como máquina de se fazer dinheiro e cabeças não pensantes. Godard, acompanhado de muitos autores como François Truffaut (que viria a trazer “Os Incompreendidos” (1959), uma poesia sobre a liberdade e a juventude) e Claude Chabrol, transpôs todas suas insatisfações e ideias, expressas anteriormente na revista, para às telas de cinema, gerando algumas das obras que conduziriam o movimento do período.
Seu primeiro filme foi “Acossado”, dirigido em 1960 e marcando o início de um período de grandes mudanças. Essa verdadeira revolução não se restringiu somente ao linguajar e estética do cinema, mas se ampliou para sua própria representação social e suas temáticas. “Acossado” talvez seja o filme-símbolo de todo esse movimento, uma explosão de contracultura e contemporaneidade, uma obra que transpira inovação por seus poros. Captando toda a energia e paixão dos diretores principalmente norte-americanos que já realizavam o cinema de autor, ou seja, que imprimiam nos filmes suas próprias características e ideias, como Hitchcock e seus suspenses magistralmente conduzidos, ou Nicholas Ray e Samuel Fuller e suas forças reflexivas de forte apelo social, Godard traduziu as transformações ocorridas em seu tempo, exaltando o potencial imagético e ideológico da linguagem cinematográfica para dar à luz ao seu próprio cinema, de fascinante fluxo de ideias, experimentações, quebra de padrões e, mais tarde, de constante veia política.
Moderno talvez seja a palavra que melhor defina “Acossado”. Em uma hora e meia, a obra conseguiu reformular a arte de se fazer cinema. Repudiando todas as fórmulas e padrões pré-estabelecidos pelos filmes antecessores e inexpressivos, que exerciam o controle da arte fílmica no tempo correspondente, o filme de Godard rompe violentamente com a tradicional narrativa e estética cinematográfica, impõe uma literal quebra de espaço-tempo, na qual a cronologia é fragmentada, a condução da narrativa se dinamiza com novos cortes, montagens ideológicas e trama fluida, não influenciada por fórmulas desgastadas, a estética é solta de qualquer paradigma e a liberdade se torna alcançável. A inovação se estende também para o próprio ato de se capturar imagem, com uma câmera livre, que acompanha os personagens em suas andanças e expressões, realiza travellings e explora cenários, é palco para um verdadeiro estudo de campo, com os mais calculados enquadramentos, as diferentes iluminações, ganha profundidade de plano e diferentes focos de atenção no mesmo quadro, uma exaltação imortal ao poder da imagem.
Como um real visionário, Godard já entendia o moderno como algo que tende ao veloz, à informação cada vez mais instantânea e abundante, traduzindo o conceito para seu filme na rápida transição de assuntos e ações, principalmente em seus dois personagens principais, que trafegam entre diferentes sentimentos, pensamentos e atos numa velocidade surpreendente, e nem sempre simultânea. A demora na cena do quarto quebra com a divisão padronizada de cenários nos filmes e contrasta a mudança rápida de espaço-tempo proposta, mas a incorpora justamente no relacionamento do casal, que transformam aquele banheiro e quarto em um palco das mais variadas expressões humanas e permitem as mais diversas experimentações estilo-narrativas. O autor faz nascer um novo ritmo, de gradual aceleração e constante transporte de ideias, marcado por um compasso inédito, por uma montagem em harmonia com o ideal proposto e por uma trilha sonora que invoca o jazz e sua aceleração para sua elegante reinvenção narrativa.
Toda essa subversão também é acompanhada de um reflexo da nova sociedade que os franceses viam nascer, de toda uma nova gama de moralidade e valores, fruto da atitude e dos movimentos das classes insatisfeitas com o quadro social preservado, futuramente vistos de forma mais explícita no ano de 1968, no qual Godard também tirou inspiração, com seu político “A Chinesa”, do mesmo ano. O casal principal de “Acossado” traz consigo a marca da mudança, da juventude, é paralelo dos novos moldes da revolução. Michel é o anti-herói de um filme de anti-convencionalismo, um malandro roubador de carros e sedutor mulherengo, que pouco se importa pelo ético e correto, fugindo totalmente na figura do protagonista moralista e heroico. Patricia é a imagem da nova mulher, em crescente liberdade, praticante de sexo, foge dos padrões de castidade e possui atitude, seja para o que for. Os dois protagonistas são livres, provocantes, quebradores de limites e até sensuais, servindo de figuras vivas dessa energia e contraversão juvenil, que acabou construindo novas bases sociais e novos movimentos artísticos.
O sexo também ganha destaque, revelando nudez, recebendo várias insinuações e com os personagens incorporando uma certa conotação sexual, explicito na contagem da dupla de quantas pessoas cada um já dormiu e nas cenas em que dialogam na cama, sobre velhice, morte, partes do corpo, relacionamento e cultura expoente, até irem para baixo dos lençóis. Com identidade própria, dúvidas e desejos, eles formam um casal de efervescência juvenil e transgressora, mas, por outro lado, até podem significar um paralelo entre a relação da França (Michel) com os EUA (Patricia), que mais tarde ganhará um rumo inesperado. Para além das simbologias, também encontramos diversas referências culturais, principalmente no que remete à literatura e aos formadores de opinião. Se permitindo exibir os novos modos e valores sociais, referências e simbologias, em sua forma inédita de se dirigir um filme, Godard traça uma quebra de paradigmas sociais e culturais que vai de encontro com a quebra na sétima arte, uma ampla ruptura tão significativa quanto o foco num beijo mais prolongado e acalorado.
O surpreendente em “Acossado” é sua constante insistência na quebra, sua essência sendo construída ao longo de toda a obra a partir da inconstância do definido, o que se revela no final, fruto de um encerramento que foge totalmente das expectativas, um desfecho de acontecimentos estranhamento cômico e trágico para o enceramento de uma película. A maneira como o autor resolve finalizar sua obra é retrato vivo da racha do esperado, do comum, dando espaço para as inovações, mesmo aqui sendo contraditória, provavelmente resultado dos sentimentos conflitantes do casal e da própria indefinição do ser humano, e até podendo remeter ao possível simbolismo França-EUA citado anteriormente. “Acossado” se finaliza e se consagra como um marco cinematográfico, uma constante subversão e reinvenção, um filme pelo cinema, feito por um gênio que sempre conseguiu ver além das limitações de seu período e do cultivado passivamente pelo âmbito social e pelas artes, que compreendeu que o cinema, antes de uma composta captura de imagens ou articulada narração, era um veículo de ideias, um porta-voz para a alma de seu realizador, uma rede imagética e sonora de reflexões em simultaneidade com seu tempo. O passo inicial para a arte infinita e contemporânea de Jean-Luc Godard.
"“Acossado” se finaliza e se consagra como um marco cinematográfico, uma constante subversão e reinvenção, um filme pelo cinema, feito por um gênio que sempre conseguiu ver além das limitações de seu período e do cultivado passivamente pelo âmbito social e pelas artes, que compreendeu que o cinema, antes de uma composta captura de imagens ou articulada narração, era um veículo de ideias, um porta-voz para a alma de seu realizador, uma rede imagética e sonora de reflexões em simultaneidade com seu tempo. O passo inicial para a arte infinita e contemporânea de Jean-Luc Godard."'
Ótima crítica!