Difícil compreender essa Romênia contemporânea sem entender o país como um todo. Quiças desde a Idade Média (com o convento distante da cidade, quase como um apêndice dela, em outra dimensão geográfica da cidade - e também cênica), em determinado momento do filme, lá pelos seus 28 minutos, o padre está entre duas pinturas colocadas na parede ao entrar em confronto com Alina, amiga de uma jovem freira, e ele mesmo parece descender daquelas figuras sacrossantas, medievais. Ou mesmo com a Romênia comunista, desde a DSS (Departamentul Securităţii Statului - a polícia secreta da Romênia da época, criada pelo famoso ditador Ceauşescu, sendo comparada ao mesmo nível, ou talvez pior, do que a KGB) até a insegurança com que vê o Ocidente, uma visão conservadora, desde o padre ortodoxo até o policial, desconfiando dos costumes e da vida prática de países como a Alemanha, vista como mais aberta do que países do Leste europeu, como Bulgária, Hungria ou mesmo a própria Romênia.
Mamãe é a madre superiora, Papai é como a personagem principal do filme, uma freira, chama o padre, único personagem masculino do universo daquelas mulheres do convento. Esse título permeia o tom abusivo que o filme como um todo passa dessas relações pessoais, pois como já foi dito, desde os tempos medievais até a Segunda Guerra Mundial a figura do padre aparece na Europa como um ser neutro, isento, mas também salvador, realmente a figura de um pai. E é curiosa a cena em que ele usa um crucifixo de metal para bater com intuito de paralisar uma mulher. Logo após, uma outra cena curiosa que representa muito bem a mentalidade que o famoso diretor Cristian Mungiu tenta passar: uma freira quase entra em colapso ao ouvir a palavra masturbação.
A partir disso, Além das Montanhas se foca na transformação cristã de Alina, mas há problemas: ela dorme abraçada como se namorasse Voichita, agride com palavras o deus cristão e tem péssimo comportamento aos olhares cristãos. E seu comportamento só irá piorar, ao ponto das mulheres no local realmente acreditarem na sua demonização.
Ainda que seu ritmo seja bastante agradável, Mungiu termina por alagar muito o filme em cenas redundantes, o que atrapalha um pouco no seu resultado final. É um conto profundo, mas que poderia ser mais incisivo. Segundo o diretor, ele fora filmado para fazer as pessoas pensarem. Mas o que há para se pensar em Além das Montanhas? (Dupa Dealuri em romeno, que significaria colina e não montanha, lembrando que montanha é acima de 300 metros e colina menos que isso) Fica o questionamento de o quanto uma relação de necessidade e dependência pode deixar de ser amigável e se tornar abusiva, com saldo negativo para ambos. O que acontece com Voichita e Alina é permissivo demais, Alina impõe e Voichita aceita, não teria alguma relação com essa Romênia contemporânea? Alguém abusivo impõe, se propõem a entrar e fazer o que quiser, e aceita-se, enquanto a religião não sabe o que fazer com isso.. e faz errado, acabando por violentar ainda mais essa situação. Isso leva ao saliente crescimento da violência urbana e do choque cultural que somos levados a ver mais no final, quando os policiais parecem assustados com tudo o que acontece naquela cidade. E é quando Voichita fica de fora do convento e vai receber um carro, que só queria uma informação para ir a outro lugar, que se percebe a solidão daquele lugar, poucas pessoas vão ali e quando vão acaba sendo um engano.
Seu final é "sujo", simbólico e assustador, a modernidade avançou bastante e aquelas pessoas pararam no tempo, com costumes tradicionais de séculos que já passaram. Como julgar civicamente alguém que já morreu há centenas de anos?
A TV Nacional Romena, que investia dinheiro nos projetos desse novo cinema que domina cada vez mais o cenário europeu, faliu por diversos motivos e o cinema precisa encontrar novos rumos de manter-se, como veio se mantendo no país. Daí fica a comparação com o Brasil, um país muito maior e com melhores recursos para sobreviver, mas que parece tão perdido quanto a pátria dos romenos, inclusive no meio cinematográfico.
E há mais: por mais tenso que seja, o caso filmado foi inspirado em relatos jornalísticos reunidos por uma escritora de Bucareste, Tatiana Niculescu Bran, que é o que poucas pessoas sabem, e que dá um tom diferente ao presenciar aquela loucura toda.
A pátria parece não cuidar de todos e esquecer de alguns de seus filhos (como Alina), a religião não consegue dar conta daquilo que sempre se propõe a fazer: o salvamento pessoal acaba por mais prejudicar a pessoa do que por literalmente salvá-la; mas e o cinema? Segundo Mungiu não levanta mais os mesmos questionamentos de quando era um telespectador há 25 anos, mas seu trabalho como cineasta vem para que ao menos o cinema consiga "salvar" alguém.
Comentários (0)
Faça login para comentar.
Responder Comentário