"Flutue como uma borboleta, pique como uma abelha."
Ali é um filme de boxe bastante diferente do habitual no cinema norte-americano - e como não seria, se tratando de uma cinebiografia do maior nome do esporte até hoje? Os minutos iniciais já deixam claro que tanto ou mais que o talento inegável de Cassius Clay/Muhammad Ali (Will Smith) nos ringues, sua história fora dele interessa ao cineasta Michael Mann. Se outros filmes focariam-se no treinamento do lutador prestes a enfrentar o campeão mundial dos pesos pesados Sonny Liston (Michael Bentt), Mann e seus quatro montadores (!!!) alternam o esforço do boxeador com um show do soul man Sam Cooke (David Elliott), um discurso de Malcolm X (Mario Van Peebles) e do pequeno Cassius (Maestro Harrell) tomando conhecimento do racismo vigente nos Estados Unidos - que seguiria com ele depois de adulto, já que um homem negro correndo pelas ruas é o suficiente para uma abordagem policial. São minutos que beiram o absurdo de tão bons, ilustram o talento e a seriedade do esportista ao mesmo tempo em que abordam seu envolvimento com a luta pelos direitos civis dos negros e o islamismo, traços definidores de sua trajetória. Tudo isso em um ritmo perfeito entre cortes e música.
É o ponto de partida para uma narrativa que abrangerá dez anos na vida de Ali, da vitória em cima de Liston, que o tornou o mais jovem campeão mundial dos pesos pesados (aos 22 anos), até a histórica luta no Zaire, onde já aos 32 anos, triunfaria de maneira épica em cima de um George Foreman (Charles Shufford) que todos consideravam invencível. Causa certa estranheza de início essa entrada de Mann em um projeto sobre Muhammad Ali, justo ele que tem sua filmografia tão marcada por filmes de ação cheios de tiroteios (que ele filma como ninguém). Porém, basta assistir a primeira sequência de luta do filme para ver que a abordagem do cineasta para o boxe será a mesma que das trocas de tiros em Fogo Contra Fogo, Miami Vice e Inimigos Públicos: clímax. Toda luta aqui é climática e a câmera de Mann, com o auxílio do sempre ótimo Emmanuel Lubezki, não se satisfaz em apenas observar os eventos, ela participa, daí os planos espetaculares que a jogam dentro do ringue, sob os ombros dos lutadores, assumindo seus pontos de vistas, sendo socada pelo protagonista ou junto com ele e etc. É um trabalho magnífico e que confere realismo aos combates.
Que ainda assim não são o foco de Ali, claro - na maioria dos filmes sobre o tema, eles não são -, que parece mais interessado ainda em como Muhammad Ali, ao contrário dos protagonistas de filmes ficcionais (a série Rocky) ou outras cinebiografias (A Luta Pela Esperança), que abraçam o "sonho americano" e se tornam campeões através dele, sempre se posicionou à margem desse conceito, inclusive, declarando o governo dos Estados Unidos como seu grande adversário. Ou seja, o boxeador, negro, que se recusa a matar vietcongues ou renunciar a sua religião, perde seu título, seu direito de lutar e milhões de dólares por conta do seu país e da "mentalidade" opressora que este prega. E precisa conquistar tudo na "raça", não apenas sem o apoio da nação como lutando contra ela. É uma grande história, surpreendendo assim o fato de que apenas em 2001 foi levada às telas em uma grande produção.
Mas ainda bem que foi assim. Somente por esse "atraso" pudemos ver Will Smith no papel principal em uma das - sem risco de exagero aqui - maiores atuações da história do cinema. Emulando perfeitamente o estilo de luta cheio de movimentação do lutador (o que não fácil nem para profissionais do boxe), Smith, apesar de na época já ser um grande astro com Independence Day e MIB - Homens de Preto no currículo, ainda consegue desaparecer sempre que encarna a pessoa pública única de Muhammad Ali, cheio de carisma e irreverência, mas sem deixar de lado o temperamento explosivo em seus confrontos com o governo. Mas se isso pode sugerir apenas uma "imitação com classe" por parte do ator, basta ver seu olhar único em diversos momentos da produção para notar ali um ator que ainda que pareça dar lugar ao seu personagem real em diversos momentos, segue tendo vida própria ao longo da obra - e a corrida com as crianças pelas ruas do Zaire é um desses momentos, e é interessante como essa cena parece evocar Rocky II - A Revanche sob uma nova perspectiva. Além disso, é interessante ver como o protagonista reage de maneira contrastante em público - eufórico, egocêntrico, exagerado até - e no íntimo - calmo, contido, mesmo quando recebe uma notícia como a de sua vitória na corte.
Auxiliando o protagonista, Ali conta com um time de coadjuvantes ótimo em seus papéis, com destaque óbvio para Jamie Foxx e Jon Voight (indicado ao Oscar junto com Smith), interpretando o conerman Bundini e o repórter esportivo Howard Cosell, respectivamente, figuras importantes na trajetória de Muhammad Ali. Além deles, surpreende a intensidade que Mario Van Peebles empresta a Malcolm X durante seu pouco, mas marcante tempo em tela.
Conseguindo chegar muito perto da grandeza de seu biografado - o que é muito, afinal, estamos falando do "Atleta do Século" passado -, Ali é por vezes cansativo e se beneficiaria de uns minutos a menos, mas basta o filme acabar para se desejar mais alguns combates com o grande Muhammad Ali.
"Você é um super-homem. E não tem kriptonita nesse ringue."
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