A fábula rural de Jeff Nichols
O rio Mississipi é certamente um dos lugares mais peculiares do planeta, paradoxal por ser um dos principais símbolos dos Estados Unidos e, ao mesmo tempo, um dos locais que menos se parece com qualquer um dos elementos característicos do país, seja em termos geográficos ou sociais. O passado e o futuro convivem em harmonia nessa fronteira natural, ainda isolada de uma sociedade que padroniza comportamentos e uniformiza as massas. Tal é o privilégio de um local inóspito, que conserva sua fertilidade cultural até os dias de hoje e molda a criatividade de incontáveis artistas, dentre eles o diretor sulista Jeff Nichols, que materializa suas influências em "Amor Bandido" (Mud, 2012) e faz de seu terceiro filme uma metáfora para o próprio rio: calmo e gentil na superfície, poderoso em profundidade.
Inspirado pelo livro "As Aventuras de Huckleberry Finn" escrito em 1884 por Mark Twain, aquele que é considerado o Monteiro Lobato norte-americano, Jeff Nichols centraliza seu roteiro na figura dos meninos Ellis (Tye Sheridan) e Neckbone (Jacob Lofland). O filme começa com Ellis escapando de sua casa para encontrar Neckbone, ouvindo uma estranha conversa de seus pais no caminho. Mas não há tempo de decifrar os sussurros, pois os amigos devem estar de volta antes do amanhecer que se aproxima. O rio Mississipi leva os garotos à uma ilha distante, onde Neckbone encontrou um barco preso na copa de uma árvore após uma enchente, que seria perfeito para servir de esconderijo e destino de aventuras se não fosse por um detalhe: há um homem solitário morando ali, e seu nome é Mud (Matthew McCounaghey).
Ellis e Neckbone à princípio se mantém à distância, cautelosos em relação à figura misteriosa que aparece pela primeira vez como num passe de mágica. Mud logo os atrai com a simpatia de alguém que reconhece nos meninos companheiros naturais e os trata de igual pra igual, mas ainda há uma nota ameaçadora em seu semblante relaxado e tranquilo, simbolizada pela pistola que carrega consigo o tempo todo. Ao passo que a amizade floresce entre o trio, Mud revela que matou um homem para proteger sua amada Juniper (Reese Witherspoon), e por isso é procurado pela polícia e por caçadores de recompensa contratados pelo pai do morto para vingar o filho assassinado. Como não pode sair da ilha, Mud precisa da ajuda dos garotos para restaurar o barco no topo da árvore e finalmente fugir com o amor de sua vida.
Toda essa história de crime passional e amor intenso aumenta ainda mais o fascínio da dupla por Mud, e juntamente com suas tatuagens, amuletos e contos fantásticos é fácil entender o impacto que este homem causa em suas imaginações infantis. Difícil é acreditar que este personagem rico em trejeitos e cheio de nuances é interpretado por Matthew McCounaghey, que até pouco tempo atrás não era nada mais do que um simples rosto bonito de Hollywood e figurinha fácil em tablóides. Com mais de 40 filmes na carreira, raros são aqueles onde sua performance é digna de nota, mas desde "O Poder e a Lei" (The Lincoln Lawyer, 2011) algo mudou para McCounaghey, e aqui não restam mais dúvidas de que ele é um ator de verdade. Mais velho, o ator demonstra maturidade e experiência ao compôr um personagem carismático e memorável, que incorpora todas as características desse ambiente sulista com originalidade ao invés de recorrer à estereótipos comuns.
Entretanto, mesmo com todo o brilho de McCounaghey o filme se destaca mesmo pela relação de Mud com os meninos. Sobretudo Ellis, que projeta nele suas próprias angústias e a ansiedade de uma criança entrando na adolescência. Não há sentimento mais infantil do que o amor, doce mel provado logo na mais tenra idade que acaricia com a mesma facilidade que machuca, e por isso Jeff Nichols o escolhe como caminho para explorar o crescimento que traz consigo a experiência adquirida pelas alegrias e decepções. Ellis se vê em meio à crise conjugal de seus pais, o que afronta sua crença inocente de que o amor é algo poderoso e inabalável. Nichols toma o cuidado para não vilanizar nenhuma das partes, estabelecendo-os como um casal que gosta um do outro mas simplesmente tem objetivos diferentes de vida. Neste contexto, a vontade que a mãe de Ellis (Sarah Paulson) sente em se mudar para a cidade não faz dela alguém pior do que o pai Senior (Ray McKinnon, em grande interpretação), que faz parte deste cenário e defende seu estilo de vida no rio à todo custo.
Por outro lado ali está Mud, um homem com a mesma idade mental de seus novos amigos, que faz do amor incondicional a razão de sua existência e por isso é encarado por Ellis como a prova definitiva de que é possível existir sentimentos que resistem à todos os testes cruéis do tempo. Pouco importa sua situação precária: em olhos infantis que só enxergam o aspecto lúdico das situações, Mud é o futuro que Ellis deseja para si, e por isso seu desejo de se reunir com Juniper é visto pelo garoto como uma cruzada heróica e nobre da qual deseja intensamente fazer parte. Neckbone é o parceiro leal de Ellis nessa aventura, e a performance do estreante Jacob Lofland não deve em nada ao ótimo trabalho de Tye Sheridan, que traz no currículo a experiência prévia de ter sido dirigido por Terrence Malick em "A Árvore da Vida" (The Tree of Life, 2011). Nascido e criado na mesma região, Lofland está confortável na pele de Neckbone, que vê em Mud a figura paterna que não teve apesar do companheirismo de seu tio Galen (Michael Shannon, pouco aproveitado).
Assim como o ator mirim, o cineasta Jeff Nichols também teve sua criação banhada pelo delta do rio Mississipi, e seu estilo cinematográfico reflete o amplo conhecimento da região. Poucos são os diretores que compreendem este lugar, e menos ainda são aqueles que o respeitam o suficiente para não introduzir elementos alienígenas com o único propósito de tornar o ambiente rural mais palatável para os públicos urbanos. Nichols não só preserva o cenário como também lhe dá o mesmo destaque dos personagens principais, deixando que sua câmera repouse por alguns momentos em tomadas focadas nos elementos naturais, harmonizados na fotografia bela destes lugares inóspitos onde apenas câmeras portáteis conseguem chegar. O olhar aguçado do diretor para todos os elementos da atmosfera fazem de "Amor Bandido" uma obra exuberante e palpável, traduzindo em imagens todas as peculiaridades desse lugar tão singular onde a natureza afeta profundamente as vidas das pessoas.
Firmando-se como um legítimo Autor dotado de uma voz criativa distinta, Nichols assina o roteiro com a propriedade de um veterano, cuja assinatura traz um ritmo bem cadenciado e uma progressão constante. Por ser toda construída sob a perspectiva de dois meninos, aliada à cenas de impacto visual como o barco incrivelmente alojado na árvore, a narrativa tem um ar romântico de fantasia e folclore que torna o drama agradável à todos os públicos. Mas Nichols mantém as raízes de sua obra fincadas na realidade de conflitos sentimentais adultos, e mesmo o idealismo de Mud pouco a pouco se revela a sua tragédia pessoal, ao passo que sua armadura de sonhos se desmonta para revelar um homem vulnerável que se refugia nas próprias histórias fantásticas e na sorte de contar com o providencial aliado Tom Blankenship (o ótimo Sam Shepard), que tenta alertá-lo para o fato de estar sujeito à todas as brutais consequências de ser um sonhador irresponsável no mundo adulto.
Pela qualidade de todos os seus aspectos, "Amor Bandido" se desenhava como um clássico moderno até que Nichols perde o controle da narrativa ao final, optando por uma cena que, apesar de previsivel, é mal trabalhada e arrasta o filme de volta ao lugar comum do gênero. Pensados pelo diretor e roteirista com o objetivo de conferir uma sensação de urgência ameaçadora ao filme, os caçadores de recompensa que perseguem o protagonista acabam sendo o maior problema do longa. Como as relações pessoais demandam um tempo maior em seu desenvolvimento, sobra pouco destaque para o argumento centrado na vingança, que por isso se revela vazio e óbvio quando é chegada a hora da conclusão. Nichols hesita em abraçar sua própria lógica emocional e opta por um caminho projetado somente para agradar o grande público norte-americano em termos de ação e sentimentalismo, destoando de toda a atmosfera agridoce estabelecida anteriormente. Em outras palavras, falta uma pitada de tragédia na receita deste "Amor Bandido".
À esta altura, porém, o diretor já nos proporcionou uma aventura agradável neste ambiente rural povoado por personagens interessantes e muito bem interpretados, onde se destaca o impecável trio principal. Matthew McCounaghey se confirma como um ator de primeiro escalão em seu melhor trabalho até a data, e o mesmo vale para o diretor Jeff Nichols, que trabalha sua cinematografia impecável e a simplicidade de valores como honestidade, lealdade e confiança para pintar um belo quadro desta parte do mundo. É abordando temas universais sob uma ótica naturalista que a fábula de Nichols conserva o seu apelo universal e se revela um dos melhores filmes do ano, ainda que seja apenas o ponto onde o rio acaba e o horizonte se abre ao infinito. Agora cabe apenas ao jovem cineasta navegar por águas mais perigosas, decidindo se confia ou não em seu próprio talento. O primeiro passo já foi dado.
Esse filme é fabuloso, mistura perfeita do clássico de Mark Twain e Conta Comigo!
De fato! Um grande filme de 2012/2013. Eu só faria o final diferente pra ficar perfeito.
ótimo texto Thiago. Só discordo do que diz sobre o final. 😉