“Ratos não comem cães... eles os mordem” – diz Daniel à sua esposa Valeria, que replica: “Mas são milhares”. O desespero trânsita na conversa, fazendo emergir o desentendimento. É assim que, no meio da projeção, Amores Brutos resgata debates camuflados por uma sociedade consumista, anunciando tragédias familiares tão comuns. Daniel e Valeria, assim como todos os personagens, estão ligados por problemas aos quais não procuram soluções, empurrando suas vidas com a barriga. Amores artificiais, insensibilidade, indiferença e caminhos fáceis pautam o longa-metragem. A raça humana tortura a si própria e àqueles que chamam de melhores amigos, seus cachorros. Agora, os transmissores da peste bubônica possuem o polegar opositor e ainda racionalizam. Mordem, mordem, mordem e são milhares!
Ao desenvolver uma narrativa com três histórias paralelas e convergentes, Alejandro González Iñárritu apresenta um México desmazelado pela clandestinidade ante a selvageria do homem. Octavio e Susana, Daniel e Valeria, e Chivo e Maru encabeçam as tramas, ao lado da matilha coadjuvante ocupando papel fundamental nas relações. As duplas não se conhecem intimamente, entretanto seus destinos são análogos e inerentes ao avanço de um sinal vermelho. Octavio busca a plenitude em Susana; Daniel busca em Valeria o recomeço; Chivo busca o perdão em Maru. Aliás, Octavio (Gael García Bernal) transmite no olhar todo o sentimento do filme. A dor que sente por sua incapacidade de controlar o irrefreável amor, domina seus escrúpulos. Octavio canaliza toda sua aflição em gana, jorrando-a em seu cão Cofi que fora destítuido de qualquer outra opção que não a violência. Em determinado momento da película, Octavio, trajando uma camiseta preta estampada com a máscara do pânico – uma alusão a obra “O Grito” de Edvard Munch –, expressa literalmente toda a angústia e desespero existencial que o corrói. Quando se vê diante de um espelho rachado, todo o seu regozijo se esvaece. Brilhante trabalho de Gael.
Iñárritu demonstra sua perspicácia quando, após uma cena de rinha canil, emprega um raccord temático incrível, nos direcionando a um plano detalhe de uma carne moída sendo cozida. Somos, então, apresentados definitavemente ao viés do filme. O primitivo se apossa do civilizado. Confirma-se a hipótese de que um acordo por dinheiro fora a única vez em que aqueles homens – testemunhas de suas sentenças – racionalizaram, obviamente, sem consultarem seus cães provedores. Se privam da noção, ao meio de gargalhadas e berros, de que os ruídos de tais atrocidades provocarão um abismo em suas almas. O que era necessidade capitalista, vira prazer, pura jogatina. Perder menos vale tanto quanto ganhar.
O sacríficio pessoal demonstra ser o único meio para que Octavio, Daniel e Chivo possam conviver com as pessoas que amam, pois são deles as deliberações irreversíveis. A aceitação e boa vontade para manterem seus relacionamentos são importantes fontes das quais sentem bastante ausência. Os caminhos desenvolvidos por Iñárritu mostram que não é possível reconstruir o passado, mas que deve-se viver o presente sem esquecer do futuro. Planos são destruídos pela ânsia do almejado. A conta é alta. Paga-se com vidas.
Contando com um roteiro bem amarrado, aproveitando muito da lógica dos fatos, o clima agressivo cria um paradoxo estimulante ao drama afetivo. A morbidez que adoece os personagens contrasta com o ritmo enérgico dos cortes e cenas, acompanhado de um robusto rock latino regido por Gustavo Santaolalla e um design de som que ambienta a bruta realidade dos envolvidos. As 2h30 de filme fluem naturalmente. Com a câmera seguindo os movimentos dos personagens, Iñárritu confere uma intensa carga dramática e visual, persuadindo o espectador para o entendimento do enredo. A paleta de cores envolvida por tons cinzas certifica a supressão da benevolência. O vermelho é empregado pontualmente nas cenas de violência, sem excessos.
Amores Brutos expõe o poder inconsciente da natureza humana. Quando Chivo (Emilio Echevarría) afirma ser o autoretrato de seu cão, elucida os motivos de decisões tão banais que, em momentos exaltantes, dissociam a carne do espírito. As consequências pungentes de atos, aparentemente controláveis, não dão sinal algum de sua presença até escancararem seus efeitos em rostos debilitados por perdas e fraquezas. Incrível também a cena de desfecho, resumindo precisamente a essência do filme.
Ao vermos dois carros em colisão contextualizando uma mudança radical em três histórias distintas, a única certeza que se tem é de que isso não é ficção.
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