Assim como uma comida bem temperada atiça o paladar, um filme bem azeitado pode maravilhar seu público. A experiência de ver Aquarius (idem, 2016) pode então ser comparada à degustação de uma deliciosa iguaria condimentada por sentimentos de apelo universal. E o melhor: sem perder a brasilidade. Do prólogo ambientado em 1980, a "década que não acabou" ao desfecho memorável, o longa de Kleber Mendonça Filho tem açúcar, pimenta e afeto. Clara (Sonia Braga) está no centro da narrativa, fincada em solo recifense, que responde pela cor local da produção. Ao que parece, a maior parte de sua vida foi vivida na capital pernambucana. Esses e outros detalhes são inferências permitidas pelo subtexto do filme e algumas situações.
O impasse estabelecido pelo roteiro do próprio diretor vem da relutância de Clara em abrir mão do apartamento localizado no edifício-título para a construção de um empreendimento de proporções (e intenções) megalomaníacas, de autoria do pretensioso Diego (Humberto Carrão). Porém, como nos grandes exemplares de bom cinema (ou literatura, teatro e outras artes), importa menos a "história" e mais os caminhos trilhados pelos personagens, sejam eles figurados ou denotativos. E Aquarius vai revelando sua vocação, a qual é, no fundo, a vocação de todo filme: o compartilhamento de uma(s) memória(s). Memórias essas que impregnam tanto Clara quanto outras pessoas de seu convívio, como a tia aniversariante lá nos anos 80. (Se a cômoda da sala falasse... Ela também é personagem.) Ou a filha Ana Paula (Maeve Jinkings), ressentida pelo biênio em que a mãe esteve ausente a trabalho. (Nesse momento, um puxão de orelha do irmão vem pela dedicatória de Clara no livro que escreveu nessa época, reconhecendo o tempo que lhes foi roubado.)
Boas memórias também podem vir acompanhadas de boas músicas, o que é habitual na vida de Clara, uma entusiasta da boa e velha vitrola, mas que também sabe usufruir da tecnologia vigente, embora sua entrevista sobre a carreira seja reduzida à mísera frase "Eu ouço mp3", usada como chamariz no título. Em outro momento, ela aconselha o sobrinho que vai receber uma garota carioca em casa a fazê-la ouvir Maria Bethânia: - Mostra logo que você é intenso, ela diz, doce e resolutamente. Aquarius fala sobre o cabelo, o amor e o câncer de Clara, e cada uma dessas três partes é permeada por uma delicadeza ímpar, muito mais imagética do que verbal. É cinema para olhos que veem, não que apenas enxergam. É filme para ouvidos aguçados, não apenas dotados de audição. É memória gostosa, que mora dentro do peito e brinca de vaivém entre coração e cabeça. A trilha primorosa vem logo na abertura, acompanhando uma coletânea de fotos que situa o público no Recife de outros tempos.
A pimenta, bem nos olhos de Clara, vem da guerra que se instaura contra ela da parte de Diego, nem um pouco inclinado a entender o lado da única moradora que restou no edifício. Carrão, aliás, reitera sua queda para encarnar tipos revestidos de cinismo, além de uma conduta passivo-agressiva, como bem atesta Clara num dos únicos embates em que os dois se enfrentam abertamente. E o clima pesa. Algo de bem desconfortável e preocupante fica no ar, e essa nuvem incômoda lembra muito O som ao redor (idem, 2012), em que o mesmo Mendonça Filho subverte a gramática do thriller a serviço de uma varredura na hipocrisia e nos temores (!) da dita classe média. O cotidiano pacato da escritora, de caminhadas e mergulhos na praia de Boa Viagem, em frente a qual se encontra o prédio, não é mais o mesmo. Ameaças vêm de onde menos se espera, e vários ângulos escolhidos pelo diretor corroboram uma atmosfera de sobressalto.
Para além de sua capacidade de evocar memórias e sensações, questionando inclusive pontos de vista - Se você não gosta, é velho. Se você gosta, é vintage -, Aquarius é um hino à resistência. Defender aquilo em que se acredita ou que se ama não é tarefa de fracos, sobretudo em tempos de verdades e conceitos voláteis. Clara é uma mulher de personalidade flexível, mas o roteiro focaliza seu lado leoa, disposta a impedir que o símbolo de toda sua vida seja violado. Que atriz não gostaria de ter um papel desses nas mãos? E tê-lo entregado a Sonia Braga foi um acerto imenso do realizador. Os espectadores mais antigos certamente têm suas memórias com ela, e os mais jovens podem agora apreciar esse escândalo de atriz dando seu melhor, que deixou Cannes apaixonada. As entrelinhas politizadas do texto são outro tempero muito bem-vindo a esse caldo bem cozido: Aquarius fala de uma ideologia fincada na exploração, de cupins metafóricos e literais que corroem tudo. E nos brinda com um sopro catártico lá pelas tantas, fazendo por onde, afinal, ser memorável.
O problema não é a abordagem política, o problema é o conflito ser tão nuançado quanto a novela das 8. Tivesse botado um lobisomem ou um monstro marinho no lugar do ~neto de dono de construtora~ e teria ficado mais realista.
Inclusive tem uma penca de filmes de gênero com contexto político que não precisam descambar pra esse didatismo, e nem perdem a contundência por privilegiar seus aspectos mais lúdicos - The Crazies, Piranha, Eles Vivem etc etc.
Polastri, realmente o personagem do Diego é estereotipado, mas não é sobre isso que abordei. Tem muita gente, inclusive editor aqui no CP, criticando o filme simplesmente por ele possuir abordagem política.
"E que tendência maldita, essa do cinema brasileiro em enfiar política em toda e qualquer brecha."
Entendi Matheus, quanto a isso creio que ele se expressou mal. Talvez pretendesse criticar essa safra de filmes que privilegia a mensagem política em detrimento à construção de personagens ou à dramaturgia. Óbvio que existem bons e maus filmes políticos, com as mais diversas roupagens.
Obrigado, Matheus. Minha bronca com o personagem Diego é o ator que o interpreta, que se repete muito com aquele ar de sonso. Em todas as cenas ele é engolido por Sonia Braga.