Transcorrer sobre Federico Fellini, neste caso dentro de um filme em questão, mas que poderia ser qualquer outra obra “Fellina”, é fazer um paralelo entre o múltiplo artista, de alma fragmentada em todo o tipo de arte, e o artista de mesma condição porém preso a um único estilo. O mundo da imaginação não permite pés no chão, logo todo cineasta segue princípios para se afastar ou não do solo. Eu diria que Fellini se permitia ficar no meio... Como todo ótimo filme italiano, este hora é drama, e meio segundo depois, comédia para alternar as lágrimas e, em seguida, ao riso! O cinema, picadeiro para expressar todas as outras artes foi o porto seguro que o mestre europeu ancorou até o fim; a razão já foi dita, mas a conexão entre Fellini e seus dramas/suas comédias (Dramédias) não pode ser expressa em palavras. E que me perdoe o teatro e as artes plásticas, mas não existe melhor casamento artístico do que quando o circo troca alianças com o show fílmico. Perdão, mas não há – almas gêmeas, tal qual o gigante Fellini e a colossal Giulietta Masina, aqui no papel de sua vida.
Da vida, Cabíria é uma mulher da vida, em todos os sentidos. Passa por tudo que sua existência rústica lhe oferece não unicamente como ser feminino, mas como ser humano fadado a passar pelas provações mais realistas, também em todos os sentidos. Desprendido de precipitações, Fellini jamais dita a realidade como um local cruel ou proveitoso, apenas grava os sorrisos e as tristezas de quem a vida faz de palhaça a cada momento – a síntese da maioria das protagonistas de um filme, concluindo. Cabíria tende a ter dificuldades em aprender com seus erros, sendo que o filme se inicia de um jeito e acaba do mesmo modo, uma história sobre consequências, vidas atormentadas, cheias de azar mas umedecidas com a mais pura relevância de quem, no fundo, desconhece e por isso admira as variáveis das essências alheias.
Há quem diga que Julia Roberts (Uma linda mulher) ou Catherine Deneuve (A bela da tarde) protagonizaram As prostitutas do cinema, embora nenhuma jamais foi encarnada com o mesmo humanismo, a energia e a exclusividade da, ironicamente, impagável Giulieta, esposa do regente.
E todo espetáculo necessita de um, de preferência um malabarista das diversidades que uma câmera pode captar! Enquanto Guido doma suas mulheres, o domador de Guido em 8 ½ se interessou, em boa parte de sua filmografia a investigar como um cachorro sem muito faro, mas com persistência, a legibilidade das mulheres; sua perdição final, seu El Dorado, o ponto fraco terminal. De onde vem a força de Atenas se comparada as fraquezas de um homem pelas curvas delas, os trejeitos atraentes, a textura capilar, etc... A partir do fato de que é a câmera que cria o filme, e não uma ideologia proposta, Fellini muitas vezes conseguiu sugerir a resposta a essa pergunta cercando suas atrizes de figuras masculinas imperialistas, e as fazendo se impôr! Cabíria, portanto, é a réplica mais objetiva que o regente italiano teve condições de nos dar para sua incógnita.
A opressão é um tema recorrente em outros clássicos “Fellinos”, como Amarcord, A estrada da vida (Outro exemplo nada subjetivo do poder dos oprimidos) e Julieta dos espíritos, exemplo que de tão explícito é quase vulgar por tratar de uma pessoa atormentada pela insegurança em um relacionamento. Rosselini, Visconti e Pasolini, dentre outros, estavam muito preocupados com os inúmeros problemas políticos da Itália no decorrer do século XX, e onde estava a ovelha desgarrada de Casanova? Sendo a lacuna romântica mais bem resolvida em meio às turbulências do mundo real, é claro. Sendo a bacia ítalo-irônica onde o cinema encontrou para se derramar em paz com o show de ilusão que não podia/não pode parar.
O leitor esperto já compreendeu, então, a magia imposta que dialoga enquanto filma as aventuras bem e mal sucedidas de Cabíria com seus clientes – todos homens, sem exceção. A inclusão desse filme num contexto histórico é interessante de ressaltar, até porque o cineasta entrou de cabeça num mundo onde os fracos, os bem aventurados e os lobos de bom coração não têm vez, e logo viram cordeiros para raposa nenhuma botar defeito. Isso hoje é conhecido como Publicidade, Hollywood.
Me dou ao luxo de extirpar uma circunstância: Se as fases de Fellini detêm de um ou mais termos em comum, com certeza é a identificação com o público o ponto-chave de filmes tão estranhos, pessoais, sempre surreais (Sempre!) em prol de constatações reconhecíveis para quem pensa conhecer a vida de A a Z. Dificilmente em um filme deste senhor italiano o que importa é a coerência narrativa, ou o controle da câmera. Isso são relevâncias dos anos 70 pra cá, ou dos filmes de Tarkovsky... O cerne da questão é o humanismo, a relevância emocional desde que a imagem sabe se expressar melhor que vocábulos (Cabe a Buñuel o mesmo)! Juntando esse elemento primordial para um filme chegar perto das obras do homem por trás de A doce vida, e o mundo circense em que Fellini pairou até o fim de seus dias atrás de uma câmera, Noites de Cabíria (Uma das junções mais perfeitas entre a concepção interior e exterior de uma história na sétima arte, mesmo em preto e branco) vive como uma infinita e dúbia analogia universal – deixo ao leitor a responsabilidade de sentir o porquê.
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