Alguns filmes desafiam nossa capacidade de entender a realidade em que vivemos, criando teorias para situações além de nosso entendimento e, inclusive, para que nós pensamos entender. Asas do Desejo (Der Himmel über Berlin, 1987) é um desses filmes, pois supõe a realidade de um jeito diferente do que pensamos, onde, no fim da década de 1980, a cidade de Berlim está cheia de anjos que a sobrevoam. Tais criaturas ajudam a proporcionar conforto para as almas tristes e sozinhas. E o que fica do filme, além de uma nova maneira de ver a realidade, são as questões feitas ao longo da projeção.
Asas do Desejo é um filme de perguntas e não de respostas, e tais questões são as que movimentam o mundo e o próprio homem. Quem somos nós? Qual é o sentido da nossa existência? A Felicidade existe? E os Anjos? Enfim, indagações essas que até mesmo a Filosofia e a Metafísica tem dificuldades em responder, ou, nem mesmo, conseguem. Por isso, servem para reflexão, e no filme são discutidos pelos anjos, Dammiel (Bruno Ganz) e Cassiel (Otto Sander), e, também, através dos pensamentos corriqueiros de pessoas normais, pois os anjos de aparência humana, mas invisíveis aos olhos das pessoas – exceto as crianças –, podem lê-los, misturado, ainda, com uma atmosfera onírica e transcendental.
Dammiel e Cassiel perambulam tranqüilos pelo céu e ruas alemãs, ajudando almas tristes e depressivas com seus pensamentos melancólicos. Tudo corre normalmente até que Dammiel encontra uma trapezista de um circo falido da região, Marion (Solveig Dommartin) e se apaixona por ela. Para poder concretizar seu romance, Dammiel decide experimentar as sensações humanas, que ele, enquanto anjo, não pode sentir. Para isso, teria que abrir mão da sua existência celestial por uma existência de carne e osso, humana e sensorial. E o faz, acabando por se tornar humano. Quando isso acontece, o porquê do texto recitado durante alguns momentos do filme sobre as crianças se torna muito claro: Dammiel, apesar da idade de adulto, tem que aprender, assim como uma criança as coisas do mundo, as cores, os sabores e as emoções.
Além do drama de amor do Anjo e a Trapezista, há um foco nas histórias individuais, nos minimalismos dos pensamentos das pessoas que os anjos encontram e ajudam. Detalhadamente, ficamos sabendo das tristezas, afazeres, alugueis para pagar, filosofias, ideologias, enfim, um mundo de coisas cotidianas, normais e, muitas vezes, profundas. Por um lado, isso enriquece muito o filme, por outro, deixa seu ritmo mais devagar e lento, o que necessita paciência dos expectadores. Muitos não têm essa paciência e acabam desistindo, mas, para os que continuam, a recompensa, no final da exibição, é ter a sensação de ter assistido a um filme brilhante, em quase todos os sentidos.
Asas do Desejo também é um filme muito abrangente. Além de abordar as questões filosóficas mencionadas acima, traz, também, certo conteúdo social, em que a situação da Alemanha na época é mostrada. O Muro de Berlim e a divisão do país e do mundo em ocidental-capitalista e oriental-socialista tem grande importância, pois tem influencia sobre os alemães inseguros e os seus pensamentos e ainda remete à estrutura dual do filme: em preto e branco quando mostra o ponto de vista dos anjos e colorido quando reproduz a vida dos seres humanos. Além disso, quando a câmera mostra o muro, a pobreza e o cenário desolador ao redor dele, não tem como não lembrar as questões sociais.
Outro aspecto interessante em Asas do Desejo se refere ao velho contador de histórias, Homero (referência ao escritor grego? Talvez, pois um de seus discursos é sobre a Guerra e a Paz, nos remetendo às obras Ilíada e Odisséia). Sua figura se mostra melancólica e pessimista, além de excessivamente frágil e envelhecida, o que indica que ele esteja perto da morte, mas devido à sua sabedoria e o rumo que ele toma no filme, provavelmente se tornará um dos anjos da guarda. Das histórias paralelas do filme, a dele é, certamente, a mais focada. Há, também, em todos os personagens humanos e também em Dammiel depois que abre mão de sua existência de anjo, uma sensação de que falta algo, uma tristeza, que presenciamos na vida real em todas as pessoas.
Como foi possível ver, Asas do Desejo é um filme que pode ser interpretado de diversas maneiras: filosófica, metafísica e até mesmo alegoricamente, pois, muitos consideram a dualidade de existência dos anjos em preto e branco versus existência dos humanos em colorido como a dualidade da Guerra Fria, criando a alegoria da fase que o mundo e, principalmente a Alemanha estava passando. Não há como ter certeza, e não só isso, mas toda a questão acerca dos sentimentos do ser humano nos faz refletir e gerar algum tipo de purificação catártica e espiritual, o que faz com que Asas do Desejo seja mais do que um filme, mas também um momento do Homem com ele mesmo. Não se pode esquecer a sua relevância cinematográfica, pois é um dos marcos do Cinema Novo alemão, o cinema de Win Wenders, Werner Herzog e Rainer Werner Fassbinder.
O anúncio de que Asas do Desejo tem uma continuação nos momentos finais da obra, para mim tem outro sentido do que anunciar o filme Tão Longe, Tão Perto (In weiter Ferne, so nah!, 1993) mas sim de que o ciclo dos anjos e seres humanos também continuará, mais anjos abrirão mão de sua existência por uma humana e mais humanos se tornarão anjos da guarda, como Cassiel é e Dammiel foi. Se for isso mesmo, só resta assistir à continuação para confirmar ou refutar minha tese. O que importa é que me fez refletir, e talvez seja um dos filmes que mais conseguiu isso de mim. Porque, também, foi um dos textos sobre filmes que mais gostei de escrever.
Texto baseado na estupenda crítica de Patrick Corrêa para Asas do Desejo.
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