A popularização da TV no início dos anos 50 levantou dúvidas sobre o futuro do Cinema. Muitos achavam que, com um aparelho em cada residência, não havia mais motivo para a população se deslocar para assistir filmes. Talvez por causa dessa ameaça que muitas produções norte-americanas daquele momento passaram a contar histórias metalinguísticas, ligadas direta ou indiretamente aos bastidores da Sétima Arte (Crepúsculo dos Deuses, Cantando na Chuva, Nasce Uma Estrela e até A Malvada, que diz muito sobre o Cinema através de uma trama sobre teatro). Nesse contexto, foi lançada em 1952 a obra mais abrangente sobre o desenvolvimento dos filmes em suas mais diversas fases de realização: Assim Estava Escrito (tradução tola para o já ruim título original, The Bad and The Beautiful), de Vincente Minelli.
A escolha dos personagens centrais já demonstra o interesse do cineasta em esmiuçar os meandros do Cinema. Em uma introdução inteligente, um diretor, um roteirista e uma atriz (partes distintas do processo cinematográfico) recebem ligações de um produtor decadente que deseja reuní-los em seu próximo filme. A receptividade à proposta não é nada boa, mas os três aceitam se reunir com o agente de Jonathan Shields (o produtor) e explicam, através de longos flashbacks que reconstituem suas trajetórias paralelas, os motivos para tamanha mágoa com o ex-mentor.
O personagem de Kirk Douglas é criado através da memória de outras pessoas e nunca aparece na tela no tempo presente, quando está tentando reerguer sua carreira. Isso dá a ele um caráter quase mitológico, que cria um paralelo imediato com Cidadão Kane. Além da estrutura parecida, centrada nos flashbacks, os filmes têm personagens principais semelhantes. Jonathan Shields, assim como o protagonista do filme de Orson Welles, chegou ao topo em sua profissão através de meios muitas vezes condenáveis. No entanto, apesar de também buscar objetivos pessoais, ele tinha algo que faltava a Charles Foster Kane: a paixão por seu ofício, no caso, a criação de filmes.
Começando do zero, apesar do passado familiar no ramo, Jonathan Shields mostra ao mesmo tempo uma grande capacidade criativa e uma alta habilidade de manipulação de seus companheiros para atingir o sucesso. É notável, por exemplo, a passagem em que aconselha a um diretor que um filme de terror que traria humanos vestidos de gatos apenas sugira a existência dessas criaturas, através de sombras e cenas escuras. Essa capacidade do Cinema de gerar medo por meio do que não é visto em tela viria a ter como seu maior exemplo de êxito o filme Tubarão, no qual Steven Spielberg entendeu, após a quebra do animal mecânico, que seu filme ficaria ainda mais assustador se o personagem-título permanecesse desconhecido durante a maior parte da projeção.
Representando um produtor da época em que esse profissional tinha amplos poderes na realização de filmes, mais até do que o diretor, Shields centraliza boa parte das decisões em suas mãos, contribuindo na escritura do roteiro e impondo a atriz principal das produções. A sua habitual arrogância faz com que ache que possa até mesmo se tornar diretor, o que resulta em um fracasso retumbante. Como se estivesse mandando um recado para a própria indústria de Hollywood, Minelli lembra aqui que cada um deve seguir sua função para o bom desenvolvimento do todo, e que um filme não é feito só de clímax: momentos menos impactantes servem, e muito, para dar ritmo a um longa-metragem.
Como bom diretor que foi, Minelli usa e abusa das possibilidades metalinguísticas e satiriza com inteligência alguns vícios do cinema americano. Exemplo disso é a cena em que Shields toma Georgia Harrison nos braços e, quando a trilha sonora parece indicar um momento romântico, ele a joga na piscina. Outra cena formidável acontece em meio às filmagens de uma de suas produções, na qual Georgia diz que finalmente está a sós com seu marido na trama do filme e, imediatamente, um travelling nos mostra toda a equipe de filmagem assistindo ao momento no estúdio, o que relembra a natureza ilusória do Cinema.
Outro mérito do cineasta, aqui dividido com o roteirista Charles Schnee, é o de repetir algumas situações que ganham significado especial quando aparecem em um segundo momento. Ao ver o desenho de diabo que fora tirado de sua casa, Georgia se dá conta que está no escritório de Jonathan Shields; depois de o produtor dizer que ela só se livraria da influência do pai quando pudesse desenhar um bigode em seu retrato, a atitude tomada pela personagem nos primeiros minutos de filme ganha novo sentido (que estabelece Shields como sua influência paterna); por fim, o hábito da atriz de ouvir o telefonema dos outros se repete em três oportunidades, e tem desdobramentos distintos.
Assim como prega Minelli durante o filme, Assim Estava Escrito não teria êxito se não funcionasse em seus diversos setores. Além do roteiro e da direção, o elenco também vai bem, com grande destaque para Kirk Douglas, que cria um personagem capaz de ser amável por algum tempo para conseguir seus objetivos, mas que nunca consegue deixar para trás a sua personalidade individualista, arrogante e egoísta. A atração criada por sua figura complexa marca todos os relacionamentos do protagonista, e é fundamental para o entendimento do final em aberto da produção.
Do mesmo modo que seu pai, Jonathan Shields chega ao topo do mundo do cinema, mas acaba decadente e odiado por muitos dentro do ramo. É através dessa trajetória circular que Vincente Minelli desmistifica o processo de produção de filmes, sem nunca, no entanto, deixar de exaltar o fascínio que eles podem nos causar.
http://sempreumfilme.wordpress.com/
Comentários (0)
Faça login para comentar.
Responder Comentário