Por que eu adoro cinema? Simplesmente por que das belas artes, o cinema é o que conjuga de maneira perfeita a imagem (principalmente se esta vir acompanhada de uma linda fotografia), o som (isso as trilhas incidentais até os temas ambientais), a música e a atuação. Em suma, é uma espécie de híbrido entre o teatro, a ópera (isso por que muitos filmes possuem estrutura operística) e imagem, assim como a cor intrínseca à imagem. São raros os filmes que equilibram tudo isso. Mais raros ainda são os filmes que não se prendem ao gênero, que permitem passear por todos os estilos possíveis, além de usar de todas as referências possíveis em imagem, som e música. Bastardos Inglórios é, em suma, a razão pela qual sou apaixonado por cinema.
A nova obra do mestre Quentin Tarantino (que já compôs outros poemas em movimento, como Cães de Aluguel, Pulp Fiction e Kill Bill) é o seu primeiro épico histórico. A história dos bastardos é um projeto que Tarantino tentava colocar na tela desde a década de 1990, após Jackie Brown. A obra é livremente inspirada na produção italiana Cuel Maledetto Treno Blindatto, que contém história semelhante. Bastardos também guarda similaridade com Os Doze Condenados e O Desafio das Águias. Seu novo filme demorou para sair não só pela complexidade como também pela fusão de diferentes gêneros, namorando desde o western spaghetti (já homenageado na história da Noiva) e o cinema asiático. Como imaginar um épico ambientado na Segunda Guerra Mundial que une história, western e muito sangue? Bastardos é dividido em capítulos, apresentando duas histórias que acabarão se unindo posteriormente.
O prólogo (no caso, o primeiro capítulo) mostra uma fazenda no interior da França ocupada pelos nazistas. O ano é 1941. Um produtor de leite que vive com as três filhas recebe a visita do Coronel Hans Landa (Christoph Waltz), denominado "o caçador de judeus". Lá, ele descobre que o fazendeiro abriga em seu assoalho uma família judia. A chacina então ocorre, mas uma pessoa escapa: a bela Shosanna (Mélaine Laurent). Essa abertura, que recebe o belo adendo da trilha de Ennio Morricone, não apenas introduz o espectador no universos de Tarantino, como também permite-nos ver o que nos espera ao longo dos 152 minutos de filme. Uma mescla de gêneros sem igual. A cena é tão bela quanto impactante. Primeiro ponto para Tarantino.
Três anos depois somos apresentados aos Bastardos. Um grupo de soldados judeus americanos é recrutado pelo Tenente Aldo Raine (Brad Pitt). Sua missão: matar nazistas. Não apenas matar, como também torturar e intimidar. Os nazistas, segundo Raine "O Apache", terão medo dos Bastardos. Raine ainda acrescenta que cada um de seus comandados deverá lhe dar cem escalpos nazistas. "E eu quero meus escalpos", conclui, em frase já antológica. Após essa introdução, os Bastardos começam a sua caçada incansável e brutal. Toda a cena da execução de um grupo nazista (contada em flashback por um sobrevivente - que ficou com uma suástica marcada a faca na testa - para Hitler) é inigualável e mostra a visão peculiar que Tarantino faz da violência. A violência tem aqui, como em Kill Bill, um clima quase poético, principalmente antes da entrada em cena de Donowitz (Eli Roth, que dirigiu O Albergue).
No capítulo seguinte, surge em cena mais uma vez Shosanna, agora conhecida por Emmanuelle, ela toca um cinema em Paris. Lá acaba dando de cara com o SS Frederick Zoller (Daniel Brühl), um herói de guerra que sozinho matou uma centena de inimigos. Zoller se enamora de Emmanuelle e acaba convencendo o ministro da propaganda nazista, Joseph Goebbels, a apresentar seu filme (O Orgulho da Nação, que conta justamente esse episódio da vida de Zoller) no cinema da garota. No restaurante para onde Zoller leva Emmanuelle, quem surge é justamente Landa, que protagoniza uma cena inesquecível. Emmanuelle aproveitará a situação para torrar os nazistas (aproveitando que Hitler e todo o alto-comando nacional-socialista estarão na avant-premiére). É aí que a história da garota judia e dos Bastardos se cruzam, já que eles também pretendem acabar com os nazistas naquele local.
Daí em diante, o filme se estrutura quase como um noir, principalmente na fabulosa sequência da taverna, onde surge a atriz e espiã Brigdet van Hammersmark, que ajudará os Bastardos em sua empreitada. Logo, cada cena é mais incrível que a outra. Principalmente se nela participar Hans Landa, já um dos grandes personagens da mitologia de Tarantino e de todo o cinema (e não se via um vilão com essa complexidade desde o Coringa em Batman - O Cavaleiro das Trevas). Landa combina cinismo, crueza e dramaticidade. É o nome do filme. O decorrer de Bastardos é marcado por outras tantas belas e surpreendentes cenas, em especial quando o plano do cinema começa a tomar rumo. O clímax de Bastardos é surpreendente, pela ousadia não apenas da solução como da conduta de alguns personagens.
O roteiro de Quentin Tarantino comprova sua maturidade enquanto diretor. Cinéfilo na plena acepção da palavra, Tarantino usa de todas as referências em seu trabalho, combinando a violência já tradicional em sua filmografia, o drama de guerra explorado de grandes filmes como O Pianista, visto pelo lado judeu, assim como a temática da vingança, que outra vez é a tônica para o desenrolar da trama. Outra característica comum às suas produções é a força de um personagem feminino, no caso de Shosanna, que parte em busca da vingança quando a oportunidade surge. A sua luta não tem tantos sobressaltos como a história da Noiva, mas não deixa de ser fantástica. Tarantino também namora com os filmes de Sergio Leone com o cinema asiático, usando também um certo tom cínico (que já havia sido largamente explorado em outras de suas obras).
A trilha sonora de Bastardos é perfeita e homenageia não só os western spaghettis como também algumas de suas referências, como White Lightning, The Mercenaries e Devil's Angels. Ela atinge seu ápice em duas cenas: na abertura (embalada por tema de Ennio Morricone, excelente) e no clímax do final. Alguns momentos também são marcantes pela ausência de trilha (também na abertura e na cena da taverna)
A direção de arte é surpreendente, reconstituindo à perfeição os detalhes da cidade-luz (e nesse caso, ressalte-se o cinema de Emmanuelle), e aproveita também belas paisagens (como a fazenda da abertura). A montagem é envolvente e equilibra de maneira correta todos os momentos do filme, ainda mais se tratando de uma produção dividida em capítulos. Os figurinos são fabulosos, assim como a maquiagem. Já o som de Bastardos atinge grandes picos nos momentos mais movimentados (em especial quando se vai a um cinema com som digital).
Bastardos não seria nada sem grandes atuações. Brad Pitt está soberbo como Aldo "O Apache" Raine, com seu sotaque do Tennessee bem carregado. É a terceira atuação perfeita de Pitt (que veio dos grandes Queime Depois de Ler e O Curioso Caso de Benjamin Button. É de Pitt que, mais uma vez, surgem algumas das grandes tiradas da película. A bela Mélaine Laurent transpira uma força brutal no papel de Shossana/Emmanuelle (e aí se destaque a sequência do filme nazista, perfeita). Quem surpreende também é Eli Roth (diretor de O Albergue), como Donowitz. Dois atores fazem participação: Mike Myers (em cena curiosa) e Samuel L. Jackson, um dos atores-fetiche de Tarantino, fazendo a narração. Mas o nome de Bastardos é Christoph Waltz, extraordinário como Hans Landa, o caçador de judeus. Waltz realiza uma alternância sem igual entre o cinismo e a raiva, abusando de piadas verbais ou visuais. Será uma tremenda injustiça se a Academia ignorar esta atuação antológica.
Aldo Raine em determinado momento diz: "acho que essa é minha obra-prima". Talvez aí tenha falado o alter ego de Tarantino. Essa É a obra-prima de Tarantino, que aprendeu a contar uma história com total coesão, amarrando bem o roteiro e a tensão. Além disso, o controle que ele faz da câmera é algo raro. Raro como um diretor do quilate de Quentin Tarantino, que com Bastardos Inglórios se consolida como um dos melhores diretores da atualidade. Assumidamente pop, mas sem se perder nos clichês e nas soluções fáceis. Bastardos não é apenas uma obra do cinema. Respira cinema. É o motivo pelo qual sou apaixonado pelo cinema.
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