Um filme de Quentin Tarantino não é só um filme de um diretor famoso. O entusiasmo e o hype em torno duma nova produção do cineasta são tão incontroláveis que aquilo acaba se tornando um evento, celebrando tanto a figura nada modesta do cinéfilo amalucado quanto o próprio cinema, o domínio que este mesmo cara tem, mais do que tudo, sobre a linguagem artística. Bastardos Inglórios, afinal, tem o que Kill Bill tem, o que Pulp Fiction – Tempo de Violência tem, e que os demais trabalhos tem também – que é o que queremos ver, no fim das contas: uma ode à violência, ao caos e liberdade criativa, regados a um jogo de câmera ensandecido, um belíssimo aparato gráfico e, é claro, diálogos tão afiados quanto uma lâmina. É isso que esperamos dum artista cuja criatividade no modo de narrar suas histórias tem se tornado referência para a nova safra de cineastas.
Quanto à liberdade nas opções estético-narrativas, Bastardos Inglórios vai além do que ele propôs e Kill Bill, por exemplo, onde transformou uma busca por vingança numa verdadeira saga de vida, aqui são tomados por base os fatos históricos da Segunda Guerra Mundial, de onde se extrai apenas o essencial para transformar aquilo em um autêntico filme de autor, acima de tudo – sem concessões a respeito do comprometimento com os episódios documentados. Tarantino faz o que bem entende, o que ele quer ver e, especialmente, o que ele quer nós vejamos; para tanto, o fatídico holocausto é visto por uma inusitada perspectiva, genial por sinal, que apresenta um grupo de soldados judeus americanos, liderado pelo durão Aldo Raine (Brad Pitt), preparados pra eliminar os líderes do Terceiro Reich. Tudo é , obviamente, muito desvairado, embora Quentin saiba muito bem quais os caminhos que aquela vingança irá traçar.
Durante a trajetória da equipe de soldados e da jovem Shosanna (onde tema da vingança retorna novamente ao dilema da Noiva em Kill Bill que encontra reflexo aqui, com a moça que viu sua família massacrada pelos nazistas, e agora prepara uma revanche à altura), como não poderia deixar de ser, o diretor faz pequenas, mas pouco sutis referências sobre sua obra e o valor artístico dela – coisa que nem é lá uma surpresa, uma vez que as divulgações do “novo filme de Quentin Tarantino” parte primeiramente de uma aclamação própria dele, já determinando, de imediato, uma expectativa em volta dum projeto. Com Bastardos Inglórios ele vai além na arrogância costumeira ao estimá-lo como sua obra-prima (como bem deixa claro o diálogo final), que acaba respingando nos aspectos do filme, já que os personagens acabam encarnando estereótipos tamanha a sua unidimensionalidade, tanto os odiáveis membros do Reich quanto os justiceiros inglórios que titulam o filme. Tarantino consegue até disfarçar bem a superficialidade de suas caricaturas, primeiro porque ele sabe muito bem o que queremos ver a partir delas, e segundo, seus diálogos e a segura direção de atores conseguem conferir uma elegância aos papeis. Mas sabemos que é só aquilo lá.
E seria difícil falar de Bastardos Inglórios sem chegar nas interpretações de um elenco que batalha para roubar a cena. Brad Pitt, que já tinha demonstrado uma veia cômica potente em trabalhos anteriores, vive Aldo como um tipo machão quase histriônico, sustentado pelas falas espirituosas e boas sacadas textuais que saem de sua boca. Mas quem toma o filme pra si, indubitavelmente, é Christoph Waltz (chega até a ser repetição elogiar a performance do ator quando se fala sobre a obra em questão, mas é inevitável), sob a pele do sádico Coronel Hans Landa, ou “Caçador de Judeus”, como a alcunha permite. Seu desempenho na construção de um sujeito tão cínico, tão sarcástico e tão centrado desperta uma empatia no público, transformando-o naquela espécie de crápula ao qual ansiamos pelo sofrimento, mas jamais despercebemos sua magnética presença em cena.
De fato, o apuro estilístico de Bastardos Inglórios se sobressai ao seu argumento, por mais original que ele seja, só que estamos falando de Quentin Tarantino, um cara que, acima de tudo, consegue assegurar uma expectativa em torno do desencadeamento dos eventos, das soluções do roteiro e das resoluções da cena, e isso é atestado desde a primeira cena onde ocorre a referida chacina à família de Shosanna; a maior parte se situa na geometria espacial de uma mesa, onde dois homens conversam sobre tudo, disfarçam de alguma maneira seus objetivos, enquanto a tensão se confecciona apenas com o trabalho de câmera e a potência dos diálogos. Um momento repetido várias e várias vezes em torno da trama e da ansiedade que provoca, até atingir o pico no desfecho de ambas as vinganças; é um filme que alimenta a expectativa em volta de si, mas de todos os aparatos que o completam, seja pela figura onipresente de seu realizador ou pelos resultados artísticos que atinge, mesmo ostentando toda presunção do mundo. É um filme de Tarantino no fim das contas.
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