Segundo Marcel, o personagem principal do filme, alguns seres teriam o direito de estarem acima das leis. Você já leu ou ouviu isso? Tal pensamento não é idéia de Bresson. É a mesma idéia de Rodion Românovitch Raskólnikov, protagonista de “Crime e Castigo, romance de Fiódor Dostoiévski . Não é somente as idéias que assemelham Marcel a Raskólnikov . Ambos vivem em um apertado e sujo local em uma metrópole. Se a premissa é a mesma, o resultado difere. Raskólnikov não consegue viver após o delito cometido(que se restringiu a apenas uma vez numa noite). Já Marcel se aprimora no caminho trilhado.
O que seria essa obra de Bresson? O que nos fascina tanto na forma narrativa desse simples (e ao mesmo tempo hermético) filme? O que me surpreende é justamente que para fazer cinema ele trilhe um caminho ousado demais: Nada de impurezas, ausência do artificial, inexistências de atores, desejo de apreender o real ao invés da simples e enganosa imitação da existência. O que assusta em Bresson (justamente por que funciona maravilhosamente) é a presença de cabides (ou modelos), do não interpretar (atores não profissionais) e da obtenção dessa forma da captação do real, do verdadeiro, do humano e do inusitado (imprevisto).
Marcel denuncia pelo seu olhar o caminho trilhado e a satisfação que isso lhe dá: Seus olhos brilham de satisfação a cada furto bem sucedido, bem como vemos o rictus prazeroso que inunda sua face. O que seria simples e destituído de sentido, ganha novos ares. Estamos diante de um ser completo, não apenas o traçado de um.
Outro recurso interessante é que a Câmera passa a ser a extensão do olhar desse punguista em várias cenas. A alma do personagem é que dita o ritmo e movimento do homem. Os planos são curtos, os diálogos diretos, sem divagações. Tudo que nos foi colocado na tela está carregado de sentido: cada gesto, cada palavra, foi elaboradamente deixada ali por fazer parte de um vitral quase que inteiramente previsto anteriormente (exceto o inusitado, incorporado na edição).
No entanto o filme de Bresson exige um espectador atento. Se desviarmos o olhar por míseros segundos corremos o risco de a obra se empobrecer diante de nossos olhos. A cena da estação de Lion é veloz e ágil; digna de figurar como uma das seqüências mais bem compostas de todo o cinema francês.
O que me encanta deveras na obra, no entanto, é que ao buscar se afastar de uma fácil sentimentalidade e emotividade o filme não nega tais sentimentos. Só que eles surgem na tela de uma forma inesperada, misteriosa e difícil de definir por palavras. A cena que fecha o filme cala-nos fundo na alma. Fomos levados a ela pela magia de sua direção. E se não calasse fundo, ficaríamos com aquela sensação de algo inacabado. Uma obra chave da cinematografia mundial.
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