Hollywood é mesmo uma produtora de sonhos e sensações. Embora poucos saibam, é o áudio-visual “ópio do povo”, algo pelo qual se paga aqui R$ 8,00 a “meia-dose”. Pela “bagatela” podemos ser criminosos, príncipes, juízes, gnomos, heróis e em alguns casos, temos o direito de retornar em outro 'episódio' para resolver uma possível conversa não terminada. Assim fizemos em nossos “jogos mortais”, em nossas “supremacias”, “ultimatos”, em nosso “mundo em pânico”, em nossa podre “torta americana”. Nesses casos, salvo exceções mínimas nos “Jogos” e nos “Bournes”, em um palheiro de ideologia e má forma/conteúdo, parecemos brilhar. Mas como nosso próprio celulóide somos irreais e cada vez mais forçosos e mal feitos sempre que precisamos nos reafirmar, reaparecer, voltar dos mortos, dizer o que havia ficado subtendido. E a cada retorno, nova máscara para um “abjeto” de investimento milionário, revestido de mediocridade, sangue e vingança empanturrando-nos de cachê, bonecos, adesivos, camisetas e público.
Embora faça parte dos “retornos” e “voltas” hollywoodianas “The dark knight” de Christopher Nolan torna-se um “à parte” e fixa seu lugar como a mais independente das continuações de filmes (e aqui não quero ser taxativo, portanto essa posição não é irrevogável) já produzidas pela segunda maior indústria de cinema do mundo.
Como sabemos, esta mais recente obra sobre o sombrio herói de Gotham City é a continuação em tecnologia melhorada e em (... ?) forma, da linha iniciada por Tim Burton em 1989, com Jack Nicholson (excelente!) como Coringa e Michael Keaton (muito aquém de tudo!) como o homem-morcego. Mas Nolan supera o expressionismo e a genialidade arquitetônica de Burton. Supera em uma narrativa mais centrada num objetivo único, na história específica a ser contada, sem ter como mote a necessidade neurótica de “criar o clima” para o próximo filme (vide “A bússola de ouro” entre outros). “O cavaleiro das trevas” é sim um produto comercial, uma continuação (especificamente de “Batman Begins”), uma adaptação de quadrinhos, um dos resultados da fórmula. Mas foge do “esperado” em todos os graus imaginados.
Primeiro vamos deixar bem claro, para os alucinados por Batman, e para os abduzidos pelo cinema (pessoas como eu), que é uma burrice quase doente querer que a versão cinematográfica de qualquer coisa se pareça em tudo com o original, seja ele teatro, literatura, quadrinhos, música, cordel, figurinha, tazo... É preciso entender que película, palco e papel são regidos por linguagens diferentes, e que a obra cinematográfica tem caminhos possíveis e impossíveis de trilhar - cabe ao diretor auteur transformar letras e atos em material para lente de câmera. A adaptação tem suas limitações e seu espaço criativo, e pode ser livre ou mais verossímil à obra de influência.
“O cavaleiro das trevas” é uma adaptação e um mix de inovações e clichês baratos, estes últimos não encobrindo o valor e a beleza dos primeiros. O jogo entre silêncio e explosão de som, a fotografia em função da tensão psicológica e esta tensão em função da narrativa tornam o filme comestível do começo ao fim e obviamente termina por não saciar-nos de todo, tão boa a sensação que encadeia.
Pelo roteiro, caminham bifurcações de histórias quase separadas e embora tenham um ponto final em comum, não se atropelam - como é de praxe em filmes assim (vide “Homem Aranha”). O filme apresenta modalidades de tensão e suspense na medida certa. Provoca um riso sádico no espectador, como o do Coringa. Gotham é o espectador e o Coringa é o Governo, o Estado, o Imposto, o Assaltante, o Chefe. A diegese é de tal forma bem fechada e real em si, que a transferência do espectador para o mundo corrupto de Batman é quase uma ordem. O Complexo de Vítima se intensifica e este é um dos “ganhos” ideológicos do filme. Digo ganho, porque é ambíguo. Ao fim, não se sabe para quem torcer. Duas-Caras foi vítima da injustiça do Sistema, da Violência? Batman foi traído ao ser perseguido por querer fazer o bem – isso é tão Jesus Cristo, tão Mártir Cristão, não é? A violência de Coringa poderia ser justificada por algum elemento psicológico que o inocentasse? Vale a pena a morte de alguns policiais para salvar toda Gotham City das mãos da máfia (lembrem-se que a lógica do Nazismo era essa)? Assim, pela força de ambigüidade e do distanciamento (embora não 100%) roteirista/objeto fílmico, a obra ganha muito em não revelar tudo às claras, não estampar o final feliz, não abençoar os justos, não desrespeitar os criminosos (quem pensou que jogar o detonador pela janela do barco seria a atitude do presidiário?).
Pela música, costuram-se ruídos, ordens, gritos de fúria e histerismo. Os roncos da Batmoto, do Lamborghini, dos helicópteros e aviões são muito bem modulados. A música é de um suspense em corda-bamba: torna tudo imprevisível. Violoncelos e contrabaixos são usados com madeiras e metais graves para um efeito quase apocalíptico de um vindouro minuto trágico: o som da “anarquia” (palavras do Coringa) na qual Gotham está imersa. Assim se enverniza o clima da cidade.
E faz-se a luz. Nas panorâmicas diurnas por Hong Kong, nos planos gerais dos prédios de Gotham, nos focos médios e close-ups dos personagens, a luz é a exposição plástica de um estado de espírito – exemplo: a sequência da sala de interrogatório com o Coringa. Wally Pfister, o fotógrafo, vai do comum ensolarado ao azul-scanner, passando pelo túnel quase sépia com explosões e pelas luzes noturnas de intenções geográficas. Lanternas, holofotes, TVs, ruas com carros em travelling, a fotografia dá fôlego (embora nas externas diurnas do final seja um tanto medíocre) ao filme.
A isso soma-se a interpretação fenomenal de Heath Ledger como Coringa, o pouco uso do excelente Morgan Freeman, os clichês do baile, do triângulo amoroso, da carta. O produto é um filme obscuro, mítico, de impressionante poder de ação e sensação – impulsionadas por uma edição nervosa de cortes precisos e por uma câmera sempre colocada em um ângulo interessante. Apensar dos pequenos “estados comuns”, a direção de Christopher Nolan consegue fazer “O Cavaleiro das Trevas” ser quase como nos quadrinhos: um êxtase. Por fim, faz com que a continuação da saga (se der na telha produzir mais, tem material para um século) não seja um suplício e sim um amargo e obscuro prazer cheio de reviravoltas e ícones dignos d'O Cavaleiro das Trevas.
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