Buscado da riquíssima poesia alemã:
Por Wolfgang von Goethe:
"Sobre os montes
Há paz.
Sobre os frondes
Jaz
O último hausto.
As aves se calam no bosque.
Espera, em breve,
Também irás."
E Bertolt Brecht:
"[..] (E quando a sorte acabar, estarei perdido.)
Eles me dizem: Come e bebe e te alegra que tu o podes!
Mas como posso comer e beber se com isto eu tiro
Do faminto aquilo que como,
e se meu copo d’água
Faz falta a um sedento?
E ainda assim eu como e bebo.
Eu também gostaria de ser sábio
Nos velhos livros dizem o que é ser sábio:
Manter-se alheio aos conflitos do mundo
E passar o breve tempo sem medo.
Agir sem violência,
Pegar o mal com o bem,
Não satisfazer os desejos, mas esquecê-los;
Isto é sábio.
É o que não consigo!
Realmente, eu vivo em tempos tenebrosos."
Brecht, um destacado dramaturgo alemão, desenvolveu um estilo peculiar no qual misturava o lírico com o popular, expulso em 1933 pelos nazistas, voltaria em 1946 para a sua pátria, a qual encontraria destroçada pelo pós-guerra.
Há muito dessas poesias, de dois destacados literários alemães (de tempos diferentes..), em Berlin Alexanderplatz e isso será visto neste texto, por vezes explícita e por vezes contado com a interpretação e esforço intelectual do leitor. A minissérie televisiva do cineasta alemão Rainer Werner Fassbinder, adaptada da obra do conterrâneo Alfred Döblin. Como apresentado nas imagens de época na abertura da série, tudo ocorre em 13 capítulos de mais ou menos 59 minutos e um epílogo de quase 2 horas - quase chegando a 16 horas.
Alexanderplatz é uma praça em Berlim, que ganhara uma intensa projeção no século XIX com a construção de um mercado público e uma estação, concentrando o proletariado alemão ali, tendo o seu apogeu justamente na década de 1920, onde acompanha-se Franz Biberkopft (interpretado pelo excelente e flexível Günter Lamprecht), que passa alguns anos na cadeia por matar a sua mulher Ida (Barbara Valentin), Franz precisará lidar com os seus erros até os últimos respiros de sua vida e integrar-se novamente a sociedade, que sempre muda e que sempre excluiu aqueles que não se adaptam a ela.
De uma forma mais condensada o episódio inicial trata do reencontro à sociedade, o segundo é o purgatório, no terceiro temos a queda (o afrontamento com as decepções daqueles que "devoram a carne sob a pele"), o quarto trata sobre um punhado de pessoas presas aos instintos primitivos (a consciência do isolamento), o quinto traz as traições a um nível extremo - e quando o amor se mostra desvalorizado em meio a tanta indiferença pelo mesmo, no sétimo é onde Franz perde um membro do corpo, mas onde a sua fé na humanidade permanece intacta, e por isso, segue sendo abusado e oprimido - e no debate sobre os aleijados que não devem receber nada do governo alemão segundo um burguês rico que não trabalha em absolutamente nada; no nono Franz confronta o próprio passado, em uma comparação de erros presentes e antigos, em um eterno e malicioso retorno - Franz sabe que os seus erros o levarão ao mesmo lugar de antes, a regredir, é avisado disso e segue.. no décimo primeiro é onde se comete um erro mortal.. Amigo dos inimigos, esses até passam a duvidar da inocência de Biberkopft, que contraditoriamente passa a ser cada vez mais brutal com aqueles que ama, totalmente ao avesso. O epílogo é um sonho dentro do filme, sendo um caso totalmente à parte.
Fassbinder fora um cineasta visceral, integrado a uma geração criada no pós-Segunda Guerra no país protagonista dessa, onde tudo o que é incompreensível, nostálgico e imaterial no cinema do diretor ficando quase sempre submerso para ser entendido nesse contexto de pós-nazismo, pós-Hitler e pós-guerra. O que entender por exemplo quando o cineasta escreve que Franz sempre fora um erro, que a sociedade em que está integrado sempre fora problemática e que nunca fora visto antes e que a culpa está toda nisso? Quando critica comunistas, capitalistas e até mesmo os que não estão nesses dois polos antagônicos da política do século XX?
Eu não li a obra literária, tampouco assisti a primeira versão do filme, feita em 1931 contando com o roteiro escrito pelo próprio autor da obra, o que me dá a capacidade de analisar a série de Fassbinder pelas suas próprias capacidades visuais-narrativas, e o que me tira a capacidade de comparações mais profundas e críticas. Mas o que é Berlin Alexanderplatz? Esse produto visual tão pouco visto, muitas vezes ignorado pelos próprios cinéfilos e mesmo assim reconhecido como uma magnum opus? Berlin é um dos grandes monumentos do cinema sobre o estudo de personagens, quase não sobra paisagens e algo a se entender nos exteriores, personagens sugam, engolem, tomam conta da tela de uma maneira pouco vista antes nelas - tudo ali é muito bem detalhado, uma pessoa diferente no caminho muda tudo, e Fassbinder nos mostra em como as pessoas mudam através das diferentes situações. Sortear dois capítulos diferentes, distintos temporalmente um do outro, é um exercício de notar o que gradativamente não parece tão gritante aos olhos: a personalidade é uma matéria pré-moldada no ser humano.
O capítulo nove traz assuntos muito interessantes, não abordados de tal forma até então, criticando tanto parlamentarismo como socialismo, tanto capitalismo quanto comunismo, algo interessante de se analisar em Fassbinder: nenhuma forma de governo, talvez fora a democracia, foi útil ou ao menos não fez tantos estragos. Assim como os beijos e situações de sexo em Berlin, que são totalmente primitivas, quase arrancando uma boca a mordidas ao invés de beijos com delicadeza, a política também se mostra predatória, corrupta, opressiva.. e talvez seja esse o grande assunto abordado na minissérie: o ser humano como um caçador, como um opressor daquele que aparenta fraqueza. Berlin critica sutilmente o governo: alemães desempregados, bêbados e de ética absolutamente duvidosa permeiam todos os capítulos; frase: "O Reich alemão é uma república, e qualquer um que não acredita (glaubt), recebe uma bala na cabeça." é visto em determinado momento.. Berlin Alexanderplatz fatia várias faces negras e podres da sociedade alemã da década de 20 (período importante para a ascensão de políticas e ideias desastrosas para o país) de forma profunda, visceral.
Citado como o grande trunfo do livro, a série também passa por diversos modelos narrativos, ou seja, do mais urbano ao mais poético (ou do mais típico de Brecht ao mais Goethiano), muitas vezes tendo os dois ao mesmo tempo, com frases escritas em alemão gótico com poemas e frases de impacto (mesmo que na maioria das vezes de difícil compreensão dentro do próprio contexto dos personagens). Trabalhando novamente com o cinematógrafo austríaco Xaver Schwarzenberger (Lola de 1981 e Querelle de 1982), Berlin traz uma bela fotografia com tons amarelo-laranja, com luzes estouradas (até mesmo um metal no seio de uma prostituta parece embranquecer a tela) e sombras fortes, ao estilo impressionista e movimentos arrojados de câmera, como a conhecida volta de 360º em torno da mise-en-scène.
Grande vilã dos críticos, por sua duração, abrangência e complexidade, a maioria parece pular fora ou esperar muito tempo para ousar escrever sobre Berlin Alexanderplatz de Fassbinder. Parece mais colossal escrever sobre a série cinematográfica do que assisti-la ou tentar absorvê-la completamente, mas posso quase afirmar que pelo seu tom intimista e pelo seu expressionismo alemão (que ia do teatro ao literário) que nem o diretor poderia fazer em palavras o que fez na parte cênica. Alexanderplatz é uma salada cultural, estrangeira também, mas muito mais alemã, entendida por esses e feita para esses. E por ser uma mistura de poesia, prosa, teatro urbano, teatro formal, erotismo, cinema, delírio.. injetando tudo isso em uma gigantesca e encorpada super duração de todas as personalidades possíveis imaginadas para uma Alemanha industrial da década de 1920. Aliás, o próprio Expressionismo gostava de analisar o indivíduo isolado em meio a um mundo cada vez mais industrial e até mesmo o ditador Adolf Hitler compartilhava da ideia de uma vida mais calma e rural. Mas se é possível escrever muitas linhas sobre uma ou duas horas de projeção, até mesmo de um filme considerado ruim, inimaginável é de 15 horas com tanta ligação narrativa e histórica, é praticamente impossível esgotar esta obra como muitos tentam ao dissertar sobre ela, seu grande erro na verdade, o importante aqui é criar algo que acrescente, que levante questões e torne cada minuto mais palpável, antes ou depois de assistido.
Aqui, os alemães são mostrados como inescrupulosos, maliciosos, perdidos e consequentemente nazistas, faixa que inevitavelmente cai no braço de Franz no segundo capítulo. Isso os leva a se meterem em facções, partidos políticos e todas essas maravilhas de que somos capazes em depressões econômicas. Franz é alemão, consequentemente um errante, o braço com que mata a sua ex-mulher é o mesmo que perde no acidente pela traição de um amigo. Não há ética, não há moral, e Fassbinder não pretende cravar o alemão dali como o pior povo existente do mundo, pois até mesmo pela vida do cineasta ele entra pouco em etnia, racismo, limpeza racial (nem chega a entrar..) e assuntos do gênero; mas apenas tornar visceral aquilo que o próprio julga entender, não moralmente, mas por pertencimento.
Utilizando títulos fortes como "Um Punhado De Gente Nas Profundezas Do Silêncio" e "O Sol Aquece A Pele, Mas Às Vezes A Queima", o epílogo nominado como "Meu Sonho Do Sonho de Franz Biberkopft" é uma exibição solista, com a duração de um filme para finalizar, é praticamente um sonho filmado como em um teatro fortemente ligado ao cenário, ora interior, ora exterior, mas sempre dentro da cabeça de Franz, até que dá umas poucas escapadas, fazendo o espectador pisar novamente em chão firme, em uma cadeia ou em um tribunal. A série sempre trouxera um tom ao estilo surreal-onírico, com muitas cenas em um matadouro (já vistas em filmes anteriores como Num Ano de Treze Luas de 1978, do próprio Fassbinder), ora poético com um anjo, ora com uma narração pavorosa de dar calafrios. Não é difícil compreender que indivíduos como Reinhold (Gottfried John) só se proliferam em sociedades com uma engrenagem torta, e até mesmo Franz nunca nos é apresentado como um erro individual, mas de todo um pertencimento, muito maior que a personalidade única, diferente: Franz Biberkopft é um Jesus Cristo alemão do entreguerras (1918-1939), é o único louco o suficiente para dar a outra face, e é levado a loucura do epílogo com isso.
Do monumental ao minimalista, a estória literária nascera na época da República de Weimar (que surgira como uma opção jogada aos democratas depois das derrotas conservadoras..), e também entre o Expressionismo e a Nova Objetividade (Pós-Expressionismo), que surgira como uma nova opção ao Expressionismo e que mesmo assim é difícil de discernir do mesmo, o certo é que a obra de Fassbinder se utiliza dos dois: o barulhento e o silencioso, o dinâmico e o estático, também o primitivo e o civilizado.
Seu erro (e seria também o seu acerto?) só é percebido pela longa passagem do tempo, mas é melhor trabalhado nos capítulos que se aproximam do fim, se inicialmente personagens (como amantes) surgiam assim como desapareciam da tela (não seria uma realização dos momentos líquidos dos relacionamentos da vida?) depois tudo começa a ser mais estático, dando mais capacidade ao roteiro para inserir diferentes personalidades e sendo facilitado pela familiarização que se tem depois de presenciar mais vezes a narrativa.
Assim como Jó, do Livro de Jó (o mais antigo da Bíblia, utilizado cinematograficamente de maneira não tão bruta e até redentora como em Árvore da Vida (2011), por exemplo - também muito utilizada nos cortes narrativos, ao estilo religioso mais contido do Pós-Expressionista em Berlin..), Franz parece querer provar algo a alguma força superior, assim como Jó provara, através do maior sacrifício pela dor e pela angústia o seu amor a deus, perante satanás (Reinhold parece o seu demônio, nunca exorcizado), Franz tenta provar a bondade nas relações humanas através da amizade, o seu amor a humanidade, mas diferente de Jó, nosso personagem (muito além do herói ou anti-herói, mas humano em busca de reconciliação com o mundo) não morre cheio de cabras, filhas, centenário e com uma vida farta - a realidade crua de Berlin Alexanderplatz não poderia deixar nada sobre nada, nem a sua própria grandeza narrativa desemboca em um final voluptuoso e redentor, grandeza essa tantas vezes superada pela sua própria ironia: o tom irônico e do avesso ao religioso, pois se pessoas boas sofrem, segundo o cristianismo, pessoas como Franz sofrem ao ponto de se tornarem más (ou loucas), negando a bondade, e só assim refutando o sofrimento. Pegar ou largar, Biberkopf oscila.
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