Na formação dos Estados Unidos enquanto nação há uma série de máculas que eles tentam apagar com propagandas sofisticadas sobre o estilo de vida que cultuam, mas a verdade é que o país que se dedica, sob o véu da hipocrisia, a esfregar as liberdades civis nas faces contrariadas das nações ao redor do mundo praticou (e muito) aquilo que diz abominar hoje.
Durante muitos anos, uma tal Legion of Decency, uma espécie de Ku Kux Klan da moral cinematográfica, formada por católicos cujo lema consistia em “o bom combate contra o mau cinema”, agia ativamente para boicotar filmes que, segundo eles, não tivessem o carimbo da decência e dos bons costumes da “boa sociedade norte-americana”.
O cinema nacional foi regulado informalmente pela Hays Code até 1968, organismo que dizia o que um filme deveria ou não conter. Portanto, cenas mais picantes ou sensuais estavam completamente descartadas. Quem já assistiu “Cinema Paradiso” vai lembrar de algo semelhante (no caso, na Itália) que são os padres assistindo a um filme que será transmitido no cinema local e eles vão censurando com fitas pretas partes que consideram inconvenientes, para a posterior e efusiva decepção dos espectadores, que nesses momentos “mais quentes” só veem a tela escura.
Lançado em 1956, “Boneca de Carne”, de Elia Kazan, quase não chegava ao público devido a essa censura. É um filme com uma carga de tensão sexual e seduções que mais parecem longas preliminares, algo que causou críticas ácidas. A revista “Time Magazine” chegou a estampar em suas páginas que Kazan “jogou baixo e apresentou ao público americano o filme mais sujo já produzido no cinema”. Puro moralismo.
Em seu início, Baby Doll (título em inglês e que também dá nome à protagonista) nos conduz a uma cena exótica, onde, num casarão caindo aos pedaços, uma jovem, dormindo no berço, é olhada por um velho tarado que a espiona por trás de um dos vários buracos existentes nas paredes e no teto da casa. Só depois ficamos sabendo que o velho, na verdade, é o seu marido e que ambos estão há um ano casados, mas, como se diz, “não consumaram o casamento”.
Para piorar tudo, apesar do compromisso que ela estabeleceu de entregar-se a ele no seu 20º aniversário, a ruína do marido pode colocar tudo a perder. Devido às dívidas, não apenas a casa está em situação precária, mas também os móveis foram levados por falta de pagamento. Ela cobra uma boa vida, que é o inverso do que eles vivem.
Archie Lee (Karl Malden), seu marido, tenta todas as alternativas possíveis para contornar os problemas financeiros, na esperança de que a promessa de Baby Doll (Carroll Baker) seja cumprida. No entanto, ninguém lhe concede crédito, todas as portas lhes são fechadas e ele perde as esperanças. Sua última e desesperada alternativa é atear fogo na descaroçadeira do seu rival, Silva Vacarro (Eli Wallach), um siciliano que atraiu para si, pela superioridade do maquinário, a produção de algodão da região.
Após o incêndio provocado por Lee, Vacarro suspeita que ele seja o culpado e leva a produção de algodão para o descaroçamento na descaroçadeira do suspeito, sendo recebido por Archie Lee de braços abertos. A partir daí, com Archie Lee ocupado e aproveitando a oportunidade de estar a sós com Baby Doll, Vacarro a envolve num jogo de sedução recíproca e de objetivos que ora convergem, ora divergem. Desenvolve-se um jogo de encenação no qual cada um busca seus próprios interesses.
Quando Lee retorna pra casa e se dá conta do que está acontecendo, chegamos ao ápice do filme. Cúmplices olhares entre o rival e a sua mulher, além da baixa autoestima do protagonista criam um ambiente de tensão em que a violência aparece como caminho.
Por trás da história, há um enredo social que está presente em outras produções de Kazan. Em particular, há a forte distinção entre quem é mais ou menos cidadão a partir de critérios raciais e de origem.
Por trás dessa obra de forte componente psicológico, corresponde também um imenso nível de manipulação dos indivíduos para conquistar seus objetivos. Não há bons e maus, há pessoas condicionadas por seus interesses que agem conforme as necessidades para alcançar os fins esperados.
Apesar de os estudos sobre as motivações humanas irem muito além da razão como método, Baby Doll é uma boa composição de Kazan acerca do que move os sujeitos.
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