Em determinada altura de Boyhood (idem, 2014), quase perto de seu final, o garoto Mason (Ellar Coltrane) comenta sobre a insuficiência das palavras na descrição dos sentimentos. Soam ridículas e pobres a maior parte do tempo, então é melhor simplesmente sentir. Esse é o convite de Richard Linklater, vitorioso do prêmio de melhor direção no Festival de Berlim. Ao longo de 12 anos, ele filmou o crescimento de um menino, da infância à juventude, conforme indica o subtítulo nacional, tão didático que pode ser dispensado. O resultado desse esforço hercúleo não é menos que impressionante, dadas as suas consequências. Afinal, os atores têm suas vidas particulares, outros projetos para tocar e, mesmo assim, as cenas exibem tamanha unidade que a sensação é de que eles não fizeram outra coisa a não ser viver diante das câmeras durante todo esse tempo.
Desde a primeira cena, o que se vê é o cotidiano de um menino como outro qualquer, aprendendo que viver implica um longo ciclo de tentativa, erro e recomeço, por mais que haja quem diga que na vida não exista ensaio. Mason ensaia, erra, aprende e refaz as coisas de outro jeito, enquanto o tempo avança, sempre discretamente, sem alarde. É sempre assim: quando nos damos conta, anos e anos já se foram, e o que somos agora? O que éramos antes? É difícil saber ao certo, e não é Linklater que vai se atraver a dar essas respostas, mas apresenta possibilidades à medida que vai nos permitindo testemunhar os efeitos do crescimento sobre Mason, que mal parece um personagem, embora o filme jamais incorra numa estética ou numa abordagem documental - esta, aliás, também não está em correspondência biunívoca com o real, essa instância tão difícil de apreender. Na certa, Coltrane emprestou muito de si a Mason, e a recíproca haverá de ser verdadeira.
Acompanhar tanto tempo da vida de uma pessoa permite desenvolver uma certa intimidade com ela e reconhecer algumas de suas peculiaridades, ainda que a relação aqui seja desenvolvida de modo unilateral. Sem essa troca, o que nos resta é contemplar as ações e os diálogos do garoto com os pais, a irmã e os amigos. Nada de extraordinário, mas é nessa enorme simplicidade que mora o encanto de Boyhood, palavra que, em inglês, é usada para se referir às duas fases da vida que o longa nos apresenta. São 165 minutos que passam voando, uma importante parcela de uma história individual e, ao mesmo tempo, de qualquer um. Os amantes do prosaico vão se deliciar com essa reunião de instantes consagrados, que Linklater já mostrou ser sua especialidade, haja vista a indescritível trilogia dos antes, que recobriu 18 anos da vida de Jesse e Celine, impregnados na memória de quem caiu de amores pelo filme.
Por vezes, Mason tem uma postura resignada diante da vida, mas quando tenta exprimir o que pensa, demonstra a insatisfação de pensar que suas escolhas devam estar contida em um horizonte de alternativas previamente estabelecido, com o qual ele não se identifica por completo. Lá pelos seus 15 ou 16 anos, ele percebe que se interessa por fotografia e até consegue se ver fazendo dessa arte o seu meio de vida, mas esbarra em consequências práticas que opção traz. Lavar pratos surge como uma fonte de renda mais segura, mas isso produz algum contentamento? Questões do dia a dia como essa aparecem toda hora ao longo da narrativa, devidamente incorporadas a um roteiro que parece fluir como o curso natural da vida, sem represa que o possa conter. Boyhood é um filme repleto de achados, que desperta a certeza de que apreender o tempo é somente mais uma das várias quimeras do homem. Alguns teóricos da linguística, ao se referir aos tempos verbais, radicalizam afirmando que o presente não existe. Tudo é passado, pois o que digo já é o que acabei de dizer, e assim sucessivamente pela vida inteira.
Apesar de o crescimento de Mason ser um dos aspectos que mais chama a atenção na história, o avanço do tempo sobre os demais personagens também é notório. Ethan Hawke, na pele de Mason pai, revela toda a sua desenvoltura com o modus operandi de Linklater, tirando de letra suas sequências. São aparições escassas: ele e Olivia (Patricia Arquette) já estão separados quando Mason é criança, e pai e filho passam alguns finais de semana juntos, também na companhia de Samantha (Lorelei Linklater, que, como o sobrenome denuncia, é filha do realizador), irmã mais velha de Mason - na vida real, os atores têm poucos meses de diferença de idade. O motivo que levou à separação de Mason pai e Olivia não é explicitado, mas ela deixa entrever algumas vezes que a conduta irreponsável dele pesou na decisão final, e só com o passar dos anos o relacionamento entre os dois vai melhorando. Eles se casam novamente, mas não têm a mesma sorte. Olivia se envolve com homens que, mais tarde, demonstram fraqueza para o álcool e levam o casamento à ruína. Na vida profissional, contudo, galga muitos degraus, tornando-se professora universitária na cadeira de psicologia.
Em uma das várias entrevistas que concedeu para divulgar o filme, Linklater, um cinquentão nascido no Texas, afirmou que um ingrediente essencial para o projeto foi a paciência. Era necessário esperar um longo tempo até que sua ambição se concretizasse plenamente e, enquanto isso, ele e os envolvidos desfrutaram do processo. Não por acaso, Boyhood é feito de filigranas, de fendas temporais que se abrem diante dos olhos de um público ao qual se pede essa mesma paciência que moveu a produção, um item raro nas prateleiras da modenidade. Quanto a Coltrane, ele afirmou que não há nada de sua própria vida inserido na história, mas tudo que Linklater informava que estava acontecendo a Mason eles comparavam com suas vivências particulares, e essa maravilhosa e sutil fusão resultou em uma brilhante estética da sinceridade, como o poeta fingidor de que fala Fernando Pessoa. É um filme lindo, afinal.
Quando se dá conta de que tanto tempo passou em tão pouco tempo - o paradoxo da percepção - Olivia se queixa de que esperava que houvesse mais. Ela se casou algumas vezes, estudou, firmou posição em seu trabalho e viu seu filho crescer sem que tivesse qualquer controle sobre essa realidade. Então, é só isso? De tão orgânica e simples, a cena pode até passar despercebida na hora, mas adere ao pensamento e leva a questionar se esse também não é o nosso caso. Pode haver algo mais. Boyhood é essa poderosa síntese do antes, do agora e do depois, bem como do que ainda não se sabe que vem, se é que vem. Da primeira à última imagem, é um filme que exala ternura. Mas, sem dúvida, é a cena derradeira que resulta em um dos finais mais desconcertantemente lindos desde sabe-se lá quando. Mason chegou aos 18 anos, acabou de entrar para a faculdade, e vislumbra o final de um ciclo e o início de outro, um salto em direção ao futuro. E, tão de mansinho como se iniciou, a jornada se encerra, num fade out poderoso que nos deixa órfãos daquelas companhias que tivemos até ali.
Ah texto belíssimo. Justifica bem o 10. As vezes penso eu ser o errado em não ter visto toda essa maravilha que dizem. Deu vontade de rever e tentar compreendê-lo com outro olhar. mas sabe-se Deus quando isso vai acontecer.
Obrigado! 😁
Pelo menos, vc sabe que tá errado hahahaha
O filme é um dos mais lindos do mundo e estou pra rever em breve. 😋
Crítica excelente, muito bem escrita!
Impossível não se identificar com esse grande filme que indiscutivelmente está entre os melhores do ano.
Agradeço o elogio, Lucas! É ótimo saber que mais alguém amou o filme.
😋