Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças
BRILHO ETERNO DE UMA MENTE SEM LEMBRANÇAS É TÃO BOM, QUE ME FEZ REVER MEUS CONCEITOS SOBRE CINEMA.
Toda e qualquer opinião que formamos se dá na base de conceitos, sejam estes corretos ou não. Um conceito que eu tenho - ou melhor, tinha - era de que não existe filme nota 10 que não os clássicos incontestáveis como Psicose, 2001: Uma Odisséia no Espaço, Laranja Mecânica, Festim Diabólico, Lawrence da Arábia, Ben Hur e por aí vai. Mas, como muitos conceitos (se não todos), comecei a revê-lo no dia em que assisti Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças (Eternal Sunshine of the Spotless Mind, 2004), do fraco diretor francês Michel Gondry (O Besouro Verde), escrito pelo genial Charlie Kaufman (Quero Ser John Malkovich, Adaptação). Brilho Eterno (...) é sim, um filme nota 10.
Como base, Kaufman utiliza uma história mais do que simples e recorrente no cinema: uma história de amor e desilusão. Um homem apaixonado que é largado pelo amor da sua vida e decide se vingar. Porém, a maneira com que Kaufman conta esta história é de uma genialidade absurda, provando que um enredo simples pode sim resultar em um grande filme. Imagine se realmente fosse possível apagar alguém da sua memória para sempre por meio de uma espécie de tomografia. Quantas pessoas e suas histórias seriam apagadas por simples impulso ou vingança? Traumas seriam superados e esquecidos, mas boas lembranças e momentos especias seriam perdidos para sempre. E é nisso que o engenhoso roteiro de Kaufman aposta: nas possibilidades, no "e se?". E justiça seja feita: Gondry tem uma grande parcela de contribuição também, pois compreende o roteiro de Kaufman e o transporta perfeitamente para tela em um trabalho digno de louvor.
Jim Carrey encarna com extrema naturalidade o retraído e reprimido Joel Barish, um homem solitário e angustiado, à procura de um amor que parece não existir. Desiludido, Joel mantinha um relacionamento com uma mulher que o amava, mas pela qual ele não nutria sentimento algum além de desejo desesperado por companhia afim de preencher o vazio que sua vida havia se tornado, até que conhece a temperamental Clementina (Kate Winslet), o em contraponto total à personalidade intimista e reclusa de Joel. Jovem, impulsiva, destemida e hiperativa, ela define-se como "uma personalidade em constante mudança". E é isso que atraí os dois. Um, na esperança de ter sua existência preenchida pela sagacidade e imprevisibilidade do outro. Este, por sua vez, pela necessidade de um porto seguro e uma barreira para seus limites. E é essa impulsividade que faz com que a moça, após uma briga aparentemente normal em qualquer casal, decida apagar Joel de sua vida, coisa que este fará para pôr fim à seu tormento, mesmo que ele insista que seja por vingança, mas se arrependerá no meio do processo, pois perceberá que muitas boas lembranças do tempo vivido com Clementina estavam sobrepostas pelo ressemtimento e inconformidade com o abandono. Inicia-se então uma fuga dentro da mente de Joel para salvar a memória de sua amada nas camadas mais distantes de sua mente.
Entendimento. Compreensão. Esse é o primeiro passo para que tudo funcione bem em um filme. E em Brilho Eterno todos parecem ter compreendido seus papéis dentro do projeto. A começar por Jim Carrey, em mais uma demonstração de puro talento em uma atuação tocante e segura, sem maneirismos nem apelação desnecessária. Sempre fui fã das comédias de Carrey, que monoplizaram os anos 90, mas nunca tive dúvidas de seu talento dramático. Basta ver seu trabalho no ótimo Show de Truman - O Show da Vida e no problemático (mas não necessariamente ruim) Número 23, de Joel Schummacher, onde se mostra extremamente à vontade flertando com o noir. A interpretação de Carrey é tão excelente que não há como não nos envolvermos por completo no drama do personagem. Em certos momentos somos capazes de sentir aquele aperto no peito que acompanha Joel todos os dias de sua vida e todo seu desespero por estar prestes à perder para sempre o amor da sua vida. Circunstância essa (atuação + empatia) que atinge seu ápice na belíssima cena do desabamento da casa da praia. Espetacular. Já Winslet, assim como Leonardo Di Caprio, aproveitou muito bem a super-exposição pós Titanic (1997) e engatou uma seqüência de bons trabalhos, como Pecados Íntimos e O Leitor. Aqui, ela mostra mais uma vez, seu poderio e cria uma personagem cativante, mas não menos problemática. Clementina é uma personagem difícil de se incorporar, pois o menor deslize da intérprete pode resultar em um desastre caricato e risível. Como é fácil trabalhar com quem é bom, a química e a interação entre o casal de atores é mais do que perfeita.
Ainda sobre o elenco, o trabalhos dos atores é facilitado por receberem personagens interessantíssimos e muito bem trabalhados. Elijah Wood tentando (inutilmente, no bom sentido) livrar-se da associação imediata à Frodo (O Senhor dos Anéis) encarna Patrick, um dos técnicos que realizam o procedimento de apagamento. Completamente inapto para relacionamentos, Patrick aproveita-se da situação e "rouba" as memórias felizes de Joel e Clementina para conquistar a moça. Seu parceiro Stan (Mark Ruffalo) é o responsável por realizar o tal procedimento, parece o único personagem alheio a toda essa situação, interessado apenas em fazer o seu trabalho. Um trabalho que ele acredita ajudar as pessoas. E de fato ajuda. Tom Wilkinson interpreta o Dr. Howard Mierzwiak, o médico criador do procedimento. Aparentemente íntegro, ético e realmente interessado em apenas ajudar as pessoas, logo descobrimos que o bom Dr. já se beneficiara de seu invento, ao apagar da memória de sua ingênua e apaixonada secretária Mary Svevo (Kirsten Dunst) o caso que tiveram. Levanta-se aí a questão: quantas vezes será que o Dr. Howard se beneficiou da mesma forma? Teria ele se aproveitado de outras moças e depois as convencido de realizar o procedimento? Sabiamente, o roteiro não abrange demais estas questões paralelas, mas deixa no ar tais questionamentos.
Tecnicamente Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças é invejável. A fotografia de Ellen Kuras é formidável, enaltecendo não só os ambientes, mas o tom melancólico da trama. Note que, em todas passagens de Joel solitário, ela (a fotografia) é pesada, fria, escura e triste. E nas cenas dos bons momentos do casal, as cores fortes e vibrantes (marcadas na figura de Clementina) parecem mais evidentes e "vivas". Assim como a extraordinária trilha sonora de Jon Brion, que aposta em músicas não muito convencionais, todas sensíveis e singelas (sem serem melosas), carregadas de uma ternura e uma beleza ímpar. Um dos temas, presente principalmente nas cenas de fuga do casal Joel & Clementina, lembra muito aquele tom cômico adotado por Terry Gilliam em Os 12 Macacos, dando uma boa dinâmica ao filme. Além da edição/montagem espetacular, que encaixa perfeitamente as idas e vindas da trama não linear, destaca-se também o figurino de Melissa Toth, que caracteriza muito bem os personagens e suas personalidades, assim como o contexto em que sua vida se encontra. A equipe de produção está de parabéns por todo o trabalho formidável que executaram aqui.
Com o desenvolvimento dos personagens se dando no desenrolar da trama, principalmente o de seu protagonista, assistir Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças torna-se uma experiência excitante e imprevisível, visto que em cada cena há uma descoberta nova sobre os personagens e seu convívio. Não há cena descartável ou gratuita no filme, o que o torna prazeroso do início ao fim, embora exija uma boa dose de atenção por parte do espectador, pois um pequeno deslize e detalhes podem passar despercebidos aos nossos olhos. Pode ser que não notemos que falta uma perna em Clementina na cena em que Joel relembra a última briga que tiveram. Pode ser que não percebamos que os letreiros vão se apagando ao fundo durante algumas passagens. Ou que deixemos de notar que é Joel quem aparece na tela da TV enquanto ouve a voz de Patrick e o procura em vão dentro de sua mente (aliás, uma belíssima sacada, já que Joel não viu o rosto de Patrick, portanto não consegue formá-lo em sua lembrança). Sem contar as passagens repetidas, mas que possuem detalhes que as diferenciam por se tratarem de lembranças diferentes. A utilização do surrealismo é esplêndida e maravilhosa neste filme. Poucas vezes vi um filme que utilizasse tão bem os efeitos especiais em prol da narrativa como este aqui. Um show de encher os olhos.
É lindo ver como Kaufman brinca com a história que conta. Primeiramente, seu roteiro mostra que, ao lembrarmos de um relacionamento lembramos apenas das coisas boas, por isso sentimos tanta tristeza pelo término do mesmo. Em seguida, nos vêm à mente todas as mágoas e situações que fizeram com que aquele relacionamento se tornasse insustentável e assim, coloquemos em xeque se não é realmente melhor estarmos separados, para o bem de todos. E enfim, percebemos que são as mais simples e belas lembranças, dos momentos mais singelos e íntimos que fizeram com que aquele relacionamento tenha valido a pena ser vivido e lembrado para sempre. São as boas lembranças que devem permanecer vivas em nossa memória, pois todas as demais apenas nos trarão uma coisa: dor e tristeza.
É desta forma que Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças se mantém vivo e forte mesmo 10 anos após seu lançamento. Mostrando que sem memórias não existe culpa, mas também não há razões para se viver, pois as boas lembranças são tudo o que iremos levar desta curta, dura e complicada existência.
Muito obrigado, Felipe.
Valeu o apoio, mas não precisa motim não, Lucas...o CP não merece isso...
😁
Verdade, excelente texto!! Parabéns, me deu vontade de rever agoraaaa!!
Valeu, Alan. Esse filme nunca me cansa...