"Cesônia (a sempre belíssima Helen Mirren): Calígula, eles odeiam você agora!
Calígula: Não importa que odeiem-me, desde que temam-me.
Cesônia: Mas são senadores e conselheiros, são homens importantes!
Calígula: Tão importantes que aprovam tudo o que eu digo, devem estar loucos.. Não sei mais o que fazer para provocá-los!"
Caso você se sinta enojado quando vê na tela um imperador fazendo as mais insanas bizarrices, tudo isso não passa de uma defensiva hipocrisia. Uma negação ao passado.
O pior problema do ser humano é não reconhecer a si mesmo, não defendo a persona de Calígula; entretanto, não serei hipócrita de dizer que o seu tipo mesquinho está extinto. Porque 34 anos depois de Calígula, tivemos um novo filme polêmico: "O Lobo de Wall Street (2013)", a ponto de críticos da Academia de cinema dos EUA cuspirem e xingarem Leonardo Di Caprio e Martin Scorsese por seu filme ridículo e seu roteiro nojento. A diferença entre Jordan Belfort e César Calígula é só o tempo em que viveram, ambos chegaram onde chegaram não fazendo nada de útil para ninguém - e ainda assim, julgam os outros inferiores por isso, ambos são egoístas e indiferentes, mas mesmo assim são idolatrados por uma grande maioria que almeja sua posição ostensiva. E o mais impressionante é que o Lobo de Wall Street não tem 10% do sexo explícito e da orgia que Calígula tem, mostrando mais audácia (ou sendo apenas um lixo estrondoso como todos preferem citar).
O pior vem mesmo quando um dos críticos mais respeitados do mundo (o já falecido Roger Ebert) chamou Calígula (idem, 1979) de doentio e imprestável, dando nota zero e sendo um dos poucos filmes que o cara abandonou antes de acabar, isso não me parece pouco! Além disso, o filme é acusado de ter várias imprecisões históricas; porém, nem os documentos históricos que se têm do imperador são precisos. Só que diferente de tudo e todos, eu sou realmente levado a crer que se não fosse a troca constante de diretores (sendo todos inexperientes e originados no pornô, outro ponto que enfraquece) e o orçamento deveras apertado, este poderia ser um dos maiores épicos já feito; a produção tinha toda a audácia que Calígula precisava, mas faltou o enredo. No meu ver, também faltou o brilhantismo urbano de Calígula, no início de seu império, ele foi um dos melhores imperadores e suas obras foram consideradas brilhantes. Calígula foi até reconhecido por levar Roma onde há muito tempo ela não chegava. O filme também peca por não mostrar a fase de transição de um Calígula jovem e agradável para um imperador louco e megalomaníaco (foi mostrado no filme que logo depois de assumir ele já havia enlouquecido, sem construção nenhuma de sua loucura). E faltou mais violência (sim, por mais impressionante que isso possa parecer), o filme se foca muito no sexo e tenta impressionar assim, o que tira um pouco o foco principal que seria sua trama sanguinária. Senti falta dos assassinatos em massa que Calígula comandou (ainda que mostre alguns), famílias e crianças mortas, dos templos que mandou construir para si próprio, tudo pela "diversão".
A verdade é que se fosse ser um retrato fiel com tudo que foi escrito do louco imperador, teríamos um filme de mais de 10 horas. Mas fora isso, nenhuma das cenas de sexo me causou repulsa ou nojo, apenas reflexões.. Orgias descontroladas, há mais problemas e polêmicas em representá-las do que propriamente fazê-las? É tão difícil definir Calígula, e certamente isso traz uma grande graça ao filme que o fez "sobreviver" tão bem durante todos esses anos. É verdade que o filme carece de profundidade, e muitos o assistam (ou gostem) apenas pelas famosas cenas explícitas, enfraquecendo-o ainda mais em um todo. No Brasil por exemplo, quando passava na televisão em rede aberta, ou era na madrugada e causava a maior polêmica, ou era em sessões pornôs.
Em certa parte do filme, nosso imperador romano diz que não sabe mais o que fazer para provocar seus súditos, deixando claro que tudo aquilo era por ter tanto poder que chegava a dar tédio (o diálogo que eu citei no início). E um dos maiores tapas na cara do filme, é quando um de seus súditos lamenta que seria difícil matá-lo, já que a população tanto o amava. A verdade é que o ser humano gosta de mascarar suas impurezas mesmo sendo cheio delas (ode De Olhos Bem fechados, 1999), e o pior? sentem-se incomodados quando são desmascarados por algum artista! Não é a toa que todos os filmes que fazem isso acabam sendo polêmicos, e se antes de Cristo as coisas já eram tão esculhambadas e promíscuas, é por que o ser humano tem graves, graves problemas.
O britânico Malcolm McDowell, que é Caio Júlio César Augusto Germânico (o Calígula), oscila muitas vezes entre o bom e o horrível. Ele tentou repetir aqui uma personificação que o lançara internacionalmente por duas vezes, como Mick em Se... (If, 1968 de Lindsay Anderson, marco do Novo Cinema Britânico e da contracultura) e o inesquecível Alex DeLarge de Laranja Mecânica (A Clockwork Orange, 1971 de Stanley Kubrick). Talvez, pela picaretagem do projeto as coisas não tenham saído tão bem para McDowell mostrar o seu talento em atuações insanas. O que fica no pensamento mesmo é a coragem do ator em participar desse filme, Helen Mirren também, sendo os dois poucos profissionais a realmente participarem do filme. Visto que a maioria era atores pornôs ou amadores (se é que há diferença).
Deteste Calígula por sua direção de arte fracassada (o que leva muitos a pensarem que realmente é um filme pornô), seus figurinos e palácios são realmente muito falsos e isso tira o charme do filme; deteste por algumas interpretações frias, robóticas e amadoras; deteste por sua fotografia enjoativa, escura e sem áurea nenhuma; deteste pela troca de diretores (Tinto Brass, Giancarlo Lui, Bob Guccione) e problemas do estúdio que o filme enfrentou.. Mas jamais abomine este filme por retratar o que nossa vil raça nunca deixou de ser: nojenta e ameaçadora. E quem sabe algum dia, algum cineasta de grande porte se encoraje de levar ao telão um novo projeto sobre o imperador, já que sua história conflituosa é riquíssima em detalhes e tramas, e apresente o que faltou aqui: cordialidade e uma técnica mais apurada. O que pode ser também, um passo em falso, pois é aí que reside o charme deste filme.
(Contra todas as críticas robóticas, calculadas e inócuas. Crítica retirada e editada de um comentário meu na página do filme na rede Filmow)
Parabéns cara, ótimo texto!