CLÁSSICO ABSOLUTO E INCONTESTÁVEL DO CINEMA, CIDADÃO KANE RETRATA A SOCIEDADE AMERICANA PRÉ E PÓS-DEPRESSÃO SOB A VISÃO DE UM DE SEUS PRINCIPAIS PILARES
Sr. Thatcher: - "Acusar as empresas do transporte público de monopólio e fraude? Percebe que você é um dos maiores acionistas do transporte público? Não acha uma tolice essa sua atividade filantrópica, esse seu jornal 'Inquirer', que lhe consome US$ 1milhão por ano?”
Kane: - "Você não entende que está falando com duas pessoas? Como Charles Foster Kane, que possui 82.364 ações preferenciais, eu conheço minhas posses e eu concordo com você. Charles Foster Kane é um patife e seu jornal deveria ser fechado e um comitê deveria ser formado para boicotá-lo. Se quiser formá-lo, eu dou uma contribuição de US$ 1 mil. Mas, por outro lado, sou editor do Inquirer. E esse é o meu dever. Eu vou lhe contar um segredo: quero que os trabalhadores decentes não sejam roubados por um bando de piratas sedentos por dinheiro, pois eles não têm quem defenda seus direitos e interesses. E vou te contar outro segredo, Sr. Thatcher: acho que devo fazer isso. Tenho dinheiro e propriedades e, se eu não cuidar dos menos afortunados, outro poderá fazê-lo. Talvez alguém sem dinheiro nem propriedades, e isso seria ruim. Sim, eu perdi US$ 1 milhão ano passado. Devo perder outro milhão este ano e espero perder mais US$ 1 milhão no ano que vem com este jornal. Em razão disto, terei de fechá-lo em...60 anos!"
O diálogo acima retrata perfeitamente a essência do personagem título da obra-prima de Orson Welles, Cidadão Kane (Citzen Kane, 1941), considerado por muitos o melhor filme de todos os tempos. Concordando ou não com esta afirmação, o que pode-se dizer ser inegável sobre o filme é sua qualidade e, acima de tudo, importância histórica para o cinema. A coragem e a ousadia de Orson Welles, aliado ao seu imensurável talento técnico e artístico, transformam este drama biográfico de um personagem fictício num dos maiores exemplares do cinema. Um exercício de dialética sobre a vida de um verdadeiro ícone e sua influência na sociedade.
Ao morrer em seu imponente palácio, o magnata da imprensa Charles Foster Kane proferiu apenas uma única palavra, sem qualquer sentido aparente: Rosebud. Buscando compreender o significado de tal palavra e, principalmente, sua importância para ter sido lembrada por Kane em seus momentos derradeiros, o repórter Thompson parte em uma jornada de entrevistas às principais pessoas ligadas à Kane, como ex-esposas, tutores e amigos. Os jornalistas queriam, acima de tudo, saber quem era Charles Foster Kane. Não o magnata dono da sexta maior fortuna particular do mundo, mas sim o homem em sua intimidade, em suas relações, em suas paixões.
Apresentando, logo no início, um pequeno documentário dentro do seu filme, Welles dá a dimensão exata da importância do personagem título dentro da sociedade americana, desde os primeiros anos do século 20 até o dia de sua morte, no segundo ano da década de 40. A vida pública, política, sindical e pessoal de Charles Kane ganhava todas as manchetes de todos os jornais. Suas opiniões formavam opiniões. Seus discursos inflamavam o povo e seus escândalos chocavam. Sua personalidade completamente fora dos padrões essencialmente capitalistas dos americanos, principalmente da época, são o condutor perfeito para Welles expor idéias e ideais socialistas durante boa parte da projeção.
A busca pelo significado e pela importância da palavra Rosebud serve apenas como pano de fundo para esmiuçar todos os detalhes da vida do homem mais importante de seu tempo. Cada pessoa entrevistada por Thompson revela detalhes e segredos íntimos de Charlie Kane, sua busca por justiça, pela verdade e, principalmente, por amor.
Cidadão Kane é um filme muito bem atuado, com destaque para Orson Welles, interpretando o personagem com o mesmo ímpeto e a mesma paixão com que faz cinema. Mas Joseph Cotten também merece lembrança. A maquiagem é assombrosa, muito realista, passando a impressão de que estamos realmente assistindo imagens de diferentes fases da vida dos personagens, acompanhadas da música pesada e melancólica do mestre Bernard Herrmann (Psicose), tensa e marcante, enriquecendo cada cena.
Cidadão Kane prende a atenção do início ao fim, mesmo sendo um filme totalmente dialogado, pois nos envolvemos com a história deste que é um dos mais icônicos personagens da história do cinema. Um roteiro exemplar e uma direção impecável ficam até em segundo plano perante a coragem e a ousadia do genial Orson Welles em mexer com as raízes de uma sociedade pré-depressão e pré-segunda guerra mundial, tornando-se um marco para a sétima arte.
Se é ou não o melhor filme de todos os tempos, pouco importa, pois Cidadão Kane é mais do que um filme. É um divisor de águas. Um marco.
Elenco: Charles Kane (Orson Welles), Sr. Leland (Joseph Cotten), Susan Alexander (Dorothy Comingore), Emily Monroe Norton (Ruth Warrick), Sr. Bernstein (Everett Sloane), Sr. Thatcher (George Coulouris), Sr. Thompson (William Alland).
Direção: Orson Welles
Produção: Orson Welles
Roteiro: Orson Welles e Herman J. Mankiewicz
Música: Bernard Herrmann
Filme muito a frente de seu tempo, mas não levou Oscar de melhor filme...vai entender né?
Parabéns pelo texto.
Obrigado, Rodrigo. Vai entender essa academia, né...