“Dadinho é o caralho. Meu nome agora é Zé Pequeno, porra.”
Lançado há mais de dez anos, Cidade de Deus permanece como o ápice do cinema nacional desde a retomada, em 1995. Responsável por levar mais de três milhões de pessoas aos cinemas em sua estreia e aparecendo frequentemente em listas de melhores filmes compiladas por críticos e publicações, no Brasil e no exterior, a produção de Fernando Meirelles (co-dirigida por Kátia Lund, que abordou assuntos similares no espetacular documentário Noticias de Uma Guerra Particular, de 1999) é realmente um marco de nossa produção cinematográfica, aliando forma e conteúdo em um grande filme que, quebrando as barreiras de idioma, recebeu o merecido reconhecimento ao ser indicado a quatro prêmios de destaque na cerimônia do Oscar 2004.
Adaptando o livro homônimo de Paulo Lins, Cidade de Deus nos apresenta a uma imensa galeria de personagens marcantes, cujas histórias se confundem com a própria história da favela que dá nome às obras. Conjunto habitacional construído pelo governo carioca na década de 60, para abrigar os moradores transferidos de diversas favelas que “manchavam” outras localidades da cidade maravilhosa, a Cidade de Deus logo se tornou um lugar marcado por crime e violência, ligados ao tráfico de drogas e a disputa entre os traficantes que comandavam a favela. É nesse cenário que conhecemos o jovem Buscapé, que contrariando a “lógica” do local, permanece distante (na medida do possível) da realidade que o cerca e almeja se tornar fotografo profissional para sair de vez do lugar onde cresce. É esse jovem que servirá de narrador da sua própria história e de outros moradores daquela região, com destaque para o psicótico traficante Zé Pequeno, que com uma onda crescente de violência galga posições no tráfico para alcançar seu objetivo de se tornar o dono da Cidade de Deus, e o trágico Mané Galinha, que de homem trabalhador e honesto, se torna um perigoso criminoso buscando vingança contra Pequeno, que matou seu irmão.
Apresentando muito mais histórias e personagens do que o parágrafo anterior pode sugerir, Cidade de Deus apresenta um roteiro irrepreensível de Bráulio Mantovani, indicado ao Oscar de sua categoria, onde todas as pontas se interligam, culminando em uma única e gigantesca história, onde o mínimo acontecimento encontra eco em eventos futuros e cada pista jogada na tela é logo retribuída com revelações acerca de sua natureza. Assim, ainda que os três personagens apresentados anteriormente sejam os protagonistas do filme por natureza, cada coadjuvante encontra seu momento de destaque, muitas vezes em uma única cena que se revela a responsável por moldar o que se segue. Dessa forma, se um garoto presencia o assassinato do pai em segundo plano em uma cena que retrata um assalto a banco, logo descobrimos que aquele mesmo personagem cresceu sem esquecer as marcas do trágico dia, assumindo uma posição no fogo cruzado do tráfico para vingar-se do algoz de seu pai, desferindo um tiro responsável por finalizar o arco dramático de um importante personagem.
Claro que, amarrar tantas histórias e personagens não é tarefa das mais fáceis, principalmente em uma narrativa que não se cansa de brincar com a própria temporalidade, assim logo a impressionante (e merecidamente reconhecida com uma indicação ao Oscar) montagem de Daniel Rezende se revela um dos grandes destaques do longa ao recorrer a diversos recursos para manter o dinamismo da história e apresentar os diversos fatos que marcam o roteiro. Apostando em freeze frames, telas dividas e raccords criativos, Rezende constantemente vai e volta no tempo para apresentar acontecimentos sob novos pontos de vistas, que acrescentam novas camadas à um roteiro que parece inflar-se perigosamente apenas para surpreender com sua consistência momentos depois. Da mesma forma, a fotografia de Cesár Charlone (indicado ao Oscar por seu trabalho) é responsável por diferenciar as diferentes linhas temporais da narrativa que, cobrindo mais de uma década na história daquelas pessoas, conseguem diferenciar-se entre si apenas pelas paletas de cores adotadas.
Comandado com talento imenso por Fernando Meirelles, que utiliza toda a técnica em prol de sua narrativa, utilizando com eficiência os recursos cinematográficos para compor um filme brilhante, além de, auxiliado pela excelente preparadora de elenco, Fátima Toledo, arrancar performances incríveis de seus atores. Escolhidos após inúmeros testes, os jovens vistos aqui são moradores de favelas do Rio de Janeiros (muitos da própria Cidade de Deus) e, auxiliados pela convivência com a realidade aqui retratada, oferecem desempenhos arrebatadores e cheios de realismo, conferindo características marcantes aos respectivos personagens. Alexandre Rodrigues apresenta segurança como Buscapé, segurando bem todas as suas cenas; os irmãos Phellipe Haagensen e Jonathan Haagensen, revelam-se carismáticos como Bené e Cabeleira, respectivamente, com destaque para Phellipe, que assume bem a tarefa de representar um pouco de sanidade em meio à selvageria de Zé Pequeno; e se Matheus Nachtergaele e Seu Jorge, como Cenoura e Mané Galinha representam os nomes mais conhecidos em meio ao elenco, sem com isso prejudicar a veracidade das performances, sumindo em meio aos personagens que representam, são mesmo Douglas Silva e Leandro Firmino da Hora que se destacam ao viver o perigoso Zé Pequeno em duas etapas de sua vida.
Silva empresta seu corpo de criança e olhar ameaçador ao personagem enquanto esse ainda atende pelo nome de Dadinho, exibindo desde criança (e exatamente por isso, se tornando ainda mais assustador) as características que o levariam a se tornar o mais temido bandido da região, já Firmino confere a dose certa de psicopatia ao personagem sem com isso soar caricato ou exagerado, já que conseguimos vislumbrar ocasionalmente outras facetas de sua personalidade que o tornam mais humano aos olhos do espectador – como o choro incontido ao perder o melhor amigo ou sua expressão de desconforto ao perceber que não consegue conquistar uma mulher.
Injustamente acusado de “cosmetizar” a violência da realidade que busca retratar, Cidade de Deus em momento algum deixa que sua estética se sobreponha ao conteúdo social atrelado à sua narrativa. Sendo assim, não é por investir em recursos narrativos que o afastam do registro documental que o filme de Meirelles deixa de abordar sua ação da maneira defendida por Glauber Rocha em sua “estética da fome”, afinal a violência e suas conseqüências são exibidas aqui de maneira brutal, ainda que sob um viés estilizado. E é por isso que assistir Cidade de Deus se torna uma experiência paradoxal, já que como arte é brilhante, mas ao escancarar uma realidade tão próxima se torna trágico e triste por percebermos que nada mudou ou mudará tão cedo com o país que retrata, afinal como o último plano do filme faz questão de enfatizar, não basta matar/prender um nome do tráfico, pois outro vai assumir a ponta em seu lugar, mantendo o mesmo cenário de crianças que se tornam “sujeito homem” ao matar, roubar e se drogar, traficantes que guerreiam por domínio de seu “mercado”, alheios aos civis que sofrem em meio às rajadas de tiros e claro, policiais que por um dinheiro a mais em seus bolsos ajudam a manter o tráfico.
Seria muito melhor se Cidade de Deus fosse uma ficção com pequenos toques de realidade, mas como o depoimento real do verdadeiro Mané Galinha ao Jornal Nacional faz questão de lembrar durante os créditos finais, tudo aquilo que foi visto ao longo das duas horas anteriores está muito longe de ser “apenas um filme”.
😲😁
Obra-Prima do cinema nacional. Nota 10.
Conde esqueceu de logar com o fake do passarinho
Conde sendo Conde