Ao longo de sua filmografia o diretor norte americano David Keith Lynch, ou simplesmente David Lynch conseguiu imprimir, a cada nova obra realizada, traços particulares de sua personalidade, e, em meio a esses projetos ele transporta o espectador aos recantos mais profundos e obscuros de sua mente, sem flertar com a exatidão, apenas fazendo-nos testemunhas de seus devaneios.
Cidade dos Sonhos, assim como todos os trabalhos de Lynch faz parte uma categorização intitulada “ame-me ou deixe-me”, isso porque, as fórmulas e características que o diretor empregou em sua produção faz com que esta não agregue a todos os espectadores, tornando-se restrita a um público mais específico. Trata-se, essencialmente, de uma ode de imagens e sons que a primeira vista não farão sentido conecto aparente, mas que se tornam objetos preciosos de diversas sugestões e incontáveis hipóteses interpretativas. O filme conseguiu - e conseguirá - divergir opiniões por onde passou, sendo julgado negativamente e sendo também avidamente apreciado.
Feito originalmente como piloto de uma série de TV, Lynch almejou a Cidade dos Sonhos o mesmo sucesso e consagração que conseguiu seu renomado seriado “Twin Peaks”, durante a década de 90. De imediato, o projeto foi recusado pelas produtoras, e o argumento criado por Lynch foi guardado, até que o momento que o cineasta teve a oportunidade de apresentá-lo nas telonas. Então, com alguns retoques, lapidações e metamorfoses, Cidade dos Sonhos estreou no início da década passada adquirindo um considerável sucesso, e logo passou a ser cultuado perante o público.
Assim como para os espectadores, Cidade dos Sonhos foi um divisor de águas diante da crítica. Uns consideravam este uma obra de arte criada por Lynch, outros, porém, apontaram-no como uma farsa, uma artimanha barata de seu diretor para confundir o público. Seja para o bem ou para o mal, o filme gerou calorosas discussões por tocou seus pés, e consequentemente aumentou mais seu reconhecimento e repercussão.
A trama se situa em Hollywood. Palco onde imperam a fama, a glória, mas também a inveja e o ódio. Lugar também onde direcionam-se os sonhos, e os anseios mais profundos dos seres humanos. Cidade dos Sonhos conta a historia da jovem Betty (Naomi Watts), uma moça que almeja alcançar o estrelato tornando-se uma reconhecida atriz, para isso ela muda-se para o apartamento cedido por sua tia, para que lá possa iniciar seus testes de elenco. Entretanto, se depara com uma misteriosa mulher que acaba por ir parar acidentalmente neste apartamento, esta, por sua vez, perdeu a memória em decorrência a um acidente automobilístico, e nem ao menos lembra-se do próprio nome, então adota para si o nome de Rita (nome escolhido aleatoriamente por ela, ao ver o cartaz de um filme estrelado pela atriz Rita Hayworth). Então, Betty passa a ajudar sua nova amiga a descobrir sua verdadeira identidade e mistérios por trás de seu enigmático acidente.
Os parágrafos abaixo contêm Spoilers, é aconselhável que não os leia caso ainda não tenha conferido o filme em questão.
Em sua primeira metade o filme mostra-se como uma investigação inocente de duas jovens em busca de respostas sobre o passado de uma delas. A partir de alguns eventos bizarros a trama passa a distorcer-se em imagens complexas e indecifráveis.
O Sonho
Uma das muitas interpretações para os fatos decorrentes no filme é que em sua primeira parte, o filme trate-se propriamente de um sonho de Betty (que na verdade chama-se Dianne) aos acontecimentos que realmente ocorreram (uma forma de redenção aos atos brutais que cometeu). O acidente no qual Rita (que na verdade chama-se Camilla) sobreviveu no início do filme, na verdade, é uma ilusão criada pela protagonista ao que houve realmente. Nas sub-tramas como a do diretor que pressionado pela máfia para escalar a seu contragosto uma atriz que viverá a protagonista de seu filme; a do misterioso casal de velhinhos; a do homem na lanchonete... enfim, tudo não passa de um devaneio de Dianne, em sua visão surrealista de como ela queria que tudo na verdade tivesse acontecido.
Todos os personagens no primeiro ato do filme são reais, porém, modificados e distorcidos de acordo com a mente de nossa protagonista sobre os acontecimentos de seu pesadelo. A mente de Dianne pode ser representada pela misteriosa caixa azul, que seria uma passagem do que é imaginário para o que é real. Então, a caixa azul é aberta.
O Pesadelo
Depois dos eventos ocorridos na primeira parte, tem-se inicio nos últimos momentos do filme, os verdadeiros acontecimentos da trama. Dianne e Camilla (respectivamente, Betty e Rita, nos sonhos) são ambas atrizes que mantém um caso de amor. Camilla é uma estrela renomada e reconhecida. Já Dianne não possui muito talento, e os papéis que ganha são, geralmente, pontas que sua companheira consegue para ela nos filmes que protagoniza. Porém, Camilla passa a relacionar-se com o diretor cinematográfico Adam Kesher (que mantém o mesmo nome e profissão na parte dos sonhos) e, conseqüentemente, rompe seu relacionamento com Camilla, e anuncia os planos de um matrimônio com o diretor. Dianne desconsolada e furiosa acaba por contratar um matador de aluguel para assassinar Camilla, e entrega a ele uma determinada quantia em dinheiro (que seria a mesma encontrada na bolsa de Rita, nos sonhos), este então lhe mostra uma chave azul que será o símbolo definitivo de que a missão foi realmente efetuada.
O misterioso homem que aparece no início do filme confessando a outro que sonhou com a lanchonete, seria na verdade uma testemunha ocular da negociação de Dianne com o matador (isso é mostrado em uma cena durante a parte do pesadelo). Então, no sonho de Dianne, ele é atormentado pela estranha figura do mendigo, como uma punição que ela construiu para ele, por ter visto e ouvido mais do que deveria. Continuamente na parte dos sonhos, somos apresentados a cena em que um criminoso acaba por se envolver em encrencas enquanto estava a realizar seu trabalho (matando pessoas acima da conta, e complicando ainda mais sua situação), esse assassino nada mais é do que uma distorção de Dianne sobre a figura do matador que contratou, mostrando o que ela realmente queria que tivesse ocorrido: O matador (que no pesadelo é o contratado para matar Camilla) acabando por errar seu alvo e falhando totalmente em sua missão.
Na cena final do filme, acompanhamos Dianne em seu apartamento, encontrando a dita chave azul sobre uma mesinha. Pronto. Era o sinal que Camilla havia sido assassinada, e tudo agora tomara proporções irreversíveis. Transtornada, Dianne passa a alucinar imagens. Vê-se então a figura do casal de velhinhos - que de início do filme pareciam ser bondosos - agora a amedrontando e a punindo (estes podem ser interpretados tanto como os pais de Dianne, num ato de repreensão para com as atitudes da filha, ou como a assustadora visão de Adam e Camilla, agora velhos, muitos anos após o matrimônio, atormentando Dianne com a visão de felicidade e união que ela nunca teria). E por fim, ouve-se um tiro. Dianne está morta.
Depois de toda esta impactante e magnética experiência audiovisual que Cidade dos Sonhos apresenta a seu espectador, resta-nos como tal reconhecer a genialidade do quebra-cabeças sensorial construído por David Lynch. Mesmo que após o término de tudo não tenha agradado ou admirado a todos, uma coisa será mais do que certa, que estivemos de diante de um filme oposto a tudo já visto no cinema até então. Uma experiência realmente indescritível.
Melhor comentário para esta pérola aqui. Parabéns, esclareceu muitas das minhas dúvidas e realmente é um filmaço. Experiência única..