FRACASSO NAS BILHETERIAS, CÍRCULO DE FOGO SE MOSTRA MUITO SUPERIOR À MAIORIA DOS SIMILARES E PÕE POR TERRA A FORMATAÇÃO PADRÃO DO GÊNERO
Filmes de guerra geralmente seguem por uma linha quase inevitável de abordar os dramas dos soldados envolvidos na batalha e os reflexos de tais acontecimentos em suas vidas e das demais pessoas que convivem ao seu redor, sempre salientando a bravura daqueles que servem ao seu país e os horrores e a violência das frontes de batalha. Assim foi em Apocalypse Now, Platoon, Nascido em 4 de Julho, O Resgate do Soldado Ryan, Códigos de Guerra, Fomos Heróis e Guerra ao Terror, só pra citar alguns exemplos que vêm à mente. Então, principalmente para quem não é muito fã gênero, é muito difícil interessar-se por tudo o que chega às telonas anualmente, principalmente para os detratores do Oscar, que reconhecidamente premia com freqüência este tipo de produção, dado o patriotismo do povo estadunidense. Longe da terra de Obama e CIA, é compreensível tamanha relutância com produções do gênero, pois a fórmula é quase sempre a mesma: os EUA são sempre os mocinhos que aderem a qualquer guerra para salvar o mundo da tirania; o inimigo (seja ele germânico, vietnamita, soviético ou iraquiano) é sempre 100% malvado; dramas familiares; honra e senso de dever patriótico; uma batalha épica em que todos os personagens vão tendo mortes bonitas e até poéticas; etc. Justifica-se, assim, o fracasso de Círculo de Fogo (Enemy at the Gates, 2001) nas bilheterias. O filme britânico do diretor francês Jean-Jacques Annaud foge de quase todos os clichês do gênero, apostando em uma abordagem completamente diferente da maioria dos exemplares semelhantes e focando no misticismo em torno de um tipo de personagem muito mais atrativo do que qualquer milico honrado e traumatizado de família humilde e patriota: a enigmática figura do sniper.
O primeiro ponto de destaque e favorável ao filme é o fato de que ele NÃO é protagonizado por soldados americanos. Na verdade, não existem personagens norte-americanos (apesar de todos eles falarem inglês!). É uma batalha entre soviéticos e alemães, retratando um dos confrontos mais emblemáticos da Segunda Guerra Mundial: a batalha de Stallingrado, evento que não teve participação dos sobrinhos do Tio Sam. Apesar de algumas situações forçadas – a meu ver -, como os comandantes russos atirarem em seus próprios soldados quando estes tentam recuar (uma atitude no mínimo idiota, dada a circunstância), é bastante interessante ver um filme onde os soviéticos são os mocinhos e fogem completamente do estereótipo de sujeito frio, robusto, seco e quase robótico, retratado diversas vezes no cinema. Aqui, este modelo é desconstruído de forma muito agradável pelo diretor e pelo roteirista Alain Godard, seja na demonstração de sentimentos de uns para com os outros, seja nas tentativas de salvarem suas próprias vidas nos campos de batalha ao se depararem com o poderio do exército ariano ou ainda no enfrentamento dos próprios medos e fantasmas do passado. Ótimo trabalho de aproximação público/personagem.
A história (que chegou ao conhecimento de Godard por estar registrada em três páginas de um livro de história que ele acabou lendo por acaso) é atrativa exatamente por ser atípica e por isso reserva uma boa dose de tensão, pois não temos certeza do que irá acontecer, sendo este um cenário novo para nós. Um duelo particular entre dois exímios snipers em pleno auge da Segunda Guerra Mundial é uma idéia ousada e muito mais do que bem-vinda, rendendo excelentes momentos e ótimas sacadas do roteiro e da direção. Por exemplo, para eliminar um enorme contingente de inimigos, o atirador disfarça seu tiro ao disparar junto com a explosão de um morteiro, para que o tiro não seja ouvido pelos demais soldados. Belíssima cena.
Outra ótima particularidade do filme é a total falta de interação direta entre os dois atiradores. Tanto o mocinho russo quanto o vilão alemão, só ficam cara a cara na derradeira cena final, e mesmo assim não trocam uma palavra sequer. Ambos trabalham apenas com informações obtidas sobre o outro e seu instinto, sem nenhum outro artifício qualquer. Tão bacana quanto é a falsa falta de clímax, pois a situação do duelo final é praticamente idêntica àquelas apresentadas até então, porém com um desfecho diferente. Este belo trabalho de quebra de lugares comuns suplanta o completo desvio de foco do filme com respeito a tudo o que acontece ao seu redor. A guerra acontece, mas não a acompanhamos. Não que o filme não tenha algumas cenas de proporções gigantescas, dignas dos grandes títulos do gênero, como o empolgante massacre da cena inicial, na chegada dos soldados a cidade e a primeira investida dos soldados soviéticos em direção ao batalhão germânico. Mas o importante aqui é mesmo o confronto direto entre os dois atiradores. E nesse ponto, Círculo de Fogo sabe muito bem qual é o seu propósito.
O elenco está em muito boa sintonia, cada um compreendendo bem sua participação na produção. Jude Law (A.I. – Inteligência Artificial) vivia um momento de franca ascensão na carreira e compõe um Vassili Zaitzev com bastante competência, sem muitas caras e bocas, típicas em mocinhos desse tipo. Law é muito bom ator e sempre foi bastante profissional e dedicado, o que facilita bastante a sua empatia conosco. A bela e talentosa Rachel Wiezs acabava de estrelar o sucesso A Múmia, de Stephen Sommers, e aqui já demonstrava ser bem mais do que um rostinho muito bonito. Sua Tania possui uma importância pequena na trama em si, mas é bem mais do que um simples interesse romântico do protagonista. Tania será o pivô da crise entre Vassili e seu amigo Danilov, personagem de Joseph Fiennes (Mata-me de Prazer), que não está tão mal aqui como de costume, mas aposta demais em uma única expressão e nos trejeitos copiados do irmão (este, sim, excelente ator). Ed Harris (Apaloosa), a quem eu sempre admirei como ator, é quem tem o papel mais complicado, pois o Major Honig não é aquele vilão e antagonista ao qual estamos acostumados. Ele é sim frio, metódico e serve aos propósitos de Hitler (este talvez seja o fato que o coloca como vilão, já que em um cenário de guerra é difícil diferenciar vilões de mocinhos, sendo que todos servem a seu país e cumprem ordens), mas se mostra um homem com princípios, com conduta e que acima de tudo respeita seu oponente. Ainda temos os experientes Bob Hoskins, Mathias Habich e Ron Perlman em papéis pequenos, mas que ganham peso graças a seus intérpretes. Mas é inegável que o garoto Sacha (Gabriel Marshal-Thomson) é quem dá um toque especial a toda a atmosfera do filme, seja pela situação delicada em que se encontra, seja pelo desfecho dado ao seu personagem. E o menino se sai muito bem, principalmente em seus diálogos com o Major Honig.
Apesar da música cafona de James Horner, que poderia investir em dar mais tensão ainda a algumas cenas, Círculo de Fogo possui uma produção muitíssimo boa e um ritmo bastante agradável imposto pela direção. Não ficou tão conhecido e talvez nem seja tão bom quanto outros tantos títulos, mas com certeza é uma boa pedida para quem busca um pouco de originalidade. E uma abordagem diferente de fatos já vistos em demasia no cinema. Apresenta bons personagens e uma trama atraente o suficiente para minimizar seus pontos fracos. Bom filme que mostra que é possível sim dar um toque pessoal àquilo que parece imutável.
Tem muito tempo que vi esse, mas lembro que uma das maiores batalhas da história não é mostrada no filme, kkkkkkk
Aqui que comecei a gosta de Law, mais uma vez, texto excelente caro amigo!
Como registro historico, caro Lucas, o filme falha feio mesmo. Mas como entretenimento de qualidade e gas novo a um genero tao limitado, funciona razoavelmente bem. Veleu pela presenca novamente.
Realmente foge de alguns estereótipos, mas o achei desigual quando o vi. Teu texto ao contrário (para não fugir a regra) está muito bem urdido e nos prende do começo ao fim. Realmente é uma boa pedida para quem gosta do gênero. O elenco é um primor. Parabéns.