Na completa escuridão, as trevas são iluminadas por sapatilhas brancas, que realizam passos sutis enquanto deslizam sobre o chão azulado, uma alusão a um delicado cisne flutuando sutilmente na água misteriosa. Logo vemos a dona das sapatilhas, uma linda e pura moça, revelada pela luz esbranquiçada de um holofote. Ela e o ambiente ao seu redor estão em paz, mas percebemos a presença de algo nas trevas. É um homem. Vestido de preto, ele tenta acompanhar os movimentos da jovem, mas acaba se mutando numa criatura horrível, que dança com ela a força. Vemos o sofrimento em seu rosto, e quando a criatura por fim a solta, ela pôde se sentir livre e completa pra finalmente voar com suas próprias asas.
Após esse momento, Nina acorda de seu devaneio. Mal ela sabe que é só o início de uma jornada sombria e alucinógena tanto pra sua consciência como para o espectador que acompanha sua loucura. A grande obra-prima de Darren Aronofsky é uma viagem delirante de tamanha qualidade raramente vista no cinema, um conto de horror transformado em realidade, um drama intenso e mórbido, uma penetração profunda nas ilusões mais íntimas da mente de um personagem que invadem a mente de quem a assiste e o transporta para um mundo lôbrego e desesperador.
A assustadora história começa apresentando Nina, uma jovem tímida e ingênua, que dança numa companhia de balé em Nova York. Ela é a bailarina mais talentosa do local, devendo parte de seu sucesso á sua mãe, mas quando é escolhida para ser a Rainha dos Cisnes, num papel onde tem que interpretar o cisne branco e o cisne negro, seu equilíbrio desmorona pouco a pouco, principalmente com a presença de Lily, uma rival a sua altura que parece a encarnação perfeita do cisne negro, sedutora e promiscua, enquanto ela fica limitada a ser o cisne branco, inocente e puro. Numa jornada a própria superação e ao auto-descobrimento, Nina vai perdendo sua sanidade e se entregando cada vez mais a um mundo desconhecido e sombrio.
Dessa premissa, Aronofsky realiza um thriller psicológico maravilhoso. Sua direção é excelente, pondo técnicas de filmagens em suas cenas, como a câmera de mão, que dá um toque realista e próximo ao modo documental, ângulos estudados, visto o movimento das câmeras especialmente nas cenas de dança, diversos componentes de cenografia reciclados de uma forma peculiar, abusando de reflexos e sombras, realizando uma direção com estilo e muita segura das técnicas que arrisca.
A parte técnica também é primorosamente louvável. Cada cenário e cada figurino são próprios e cheio de detalhes, além de serem belíssimos; a montagem é muito bem equilibrada entre tomadas e cortes, formando uma estética agradável; a fotografia ousada e estilosa dá uma áurea toda especial a película, incrementando um toque de terror e formosura apropriado ao clima do filme.
Por parte das atuações, a obra é impecável. Natalie Portman superou todos os papéis de sua carreira até hoje, até mesmo em “Closer - Perto Demais”, pra dar uma intensidade sublime á confusa Nina, usando de olhares aterrorizados e expressões corporais de forma surpreendente, Mila Kunis é o encaixo perfeito a sedutora Lily, Vincent Cassel dá a Thomas Leroy um tom maduro e masculino muito apropriado, Barbara Hershey também consegue um pequeno destaque em seu papel como Erica, apesar de não ter tanto brilho como os outros atores.
A trilha sonora é fantástica, utilizando as músicas clássicas da peça “Lago dos cisnes”, mas unindo com melodias e notas obscuras que mesclam toda a sensibilidade das faixas originais ao clima assombroso da obra, explorando de violinos e piano, proporcionando uma combinação de sons ao mesmo tempo melancólica e tenebrosa. A sonoplastia também é magnífica, mixando som e imagem admiravelmente, cheia de detalhes que fazem toda a diferença, tornando o ambiente muito mais real e conseqüentemente, mais assustador.
A trama do filme é muito boa, com uma narrativa tão bem detalhada e conduzida que somos tomados por todo aquele delírio presente, sentido na pele tudo aquilo que Nina é forçada a presenciar. Chega uma hora onde não sabemos o que é verídico ou loucura na mente perturbada da personagem, presos numa teia entre pesadelo e realidade. O filme tem um ótimo ritmo e equilibra bem as cenas dramáticas e assustadoras, mesmo que em alguns momentos acabe se perdendo, até o clímax surpreendente. Múltiplas interpretações podem ser feitas ás metáforas e simbologias que pintam a tela, semelhante às asas de um cisne que se abrem pra uma abundância de idéias e sentidos.
A interpretação mais relevante é a obsessão pela perfeição que corrói o ser humano mais puro e dócil. Nina se obriga a ser uma criatura perfeita, sendo que qualquer ser humano é naturalmente imperfeito. Tendo que suportar a rígida rotina do balé, o que inclui muita disciplina comportamental, com controle de alimentação e horários, desgaste físico, submetendo o corpo á dores extremas, o que acaba gerando graves transtornos tanto pra saúde, como autoflagelação, quanto pra sanidade de qualquer bailarina. Ainda por cima, Nina fica o tempo todo tentando ser algo que não é, o que leva a garota a ir se transformando em algo que deu tanta dedicação para alcançar, passando por cima de tudo e até de si própria, mas ao mesmo tempo está mudando seu jeito de ser, o que pode nunca mais voltar e eventualmente ir a destruindo, até a morte ser a única solução pra seu sofrimento. Em seus delírios, ela vê seu rosto em diferentes pessoas, o que ilustra seu pensamento que todos estão contra ela, que querem a substituir, colocando a culpa de seus próprios defeitos e nunca conseguir a perfeição desejada nas pessoas ao seu redor.
Uma das interpretações mais diferenciadas é que o filme se trata da evolução de uma menina para uma mulher. Nina é infantilóide, muito pura e ingênua, o retrato perfeito do cisne branco, que vive submissa sobre as asas de sua mãe superprotetora Erika, que vê na filha o potencial em realizar seu grande sonho que não foi realizado. Quando grandes responsabilidades são dadas a protagonista, é hora dela aprender e amadurecer, se expondo para sentimentos e situações que primeiramente podem parecer desagradáveis e até assustadoras. Lily representa isso, uma mulher erótica e independente, que é apresentada como algo novo, mas vai se instalando em sua vida cada vez mais. Thomas se torna a presença masculina na vida dela, que vem de forma invasiva, mas gradualmente é inserida. Com o desenrolar da trama, o corpo e a mente de Nina vão mudando, acompanhamos a metamorfose dela, a revolta com sua mãe, a inserção do branco (infantil) com o negro (adulto), pra finalmente ela se transformar na Rainha dos Cisnes, uma verdadeira mulher.
Talvez o filme dê tanto destaque para o sexo justamente por que é um divisor de águas para Nina, uma linha tênue entre encarnar o cisne branco e o cisne negro. Um ato tão íntimo, que é muito reprimido pela sociedade, mas sempre vem a superfície, que é tão cheio de significados e determina tantas coisas. As masturbações dela revelam o começo de sua vida sexual, que conseqüentemente atrai seu amadurecimento. O final, quando o ferimento começa a sangrar, faz parecer que é um tipo de menstruação doentia da personagem, uma transformação em sua vida.
Uma arte em perfeita simultaneidade com outra: balé e cinema. Ao mesmo tempo em que ilustra a realidade do quão difícil e sombrio pode ser o mundo dos bailarinos, mostra pelas lentes das câmeras toda a beleza da arte dessa dança e transmite aquilo que é possível dentro de suas limitações ao ser refletida de forma cinematográfica. A obra demonstra tudo que tem a oferecer como cinema dentro da narrativa de “O Lago dos Cisnes” e consegue se expandir como arte em suas duas vias de linguagem, aprimorando seu lado artístico a um nível superior.
Uma experiência sensorial e emocional indescritível, uma obra de arte gótica e sensual, o auge fílmico da obsessão pela perfeição, a penetração profunda na mente delirante de uma jovem perturbada, independentemente das diversas interpretações e meios de linguagem, é inegável que Aronofsky realiza aqui uma obra-prima inesquecível, que sempre deixará plumas brancas ou pretas de lembrança por onde suas magníficas asas passarem.
“I just want to be perfect” - Nina
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