“A imaginação é a válvula de escape da alma.” Essa é uma daquelas frases que rondam a internet, mas ninguém sabe ao certo quem a proclamou. Talvez a citação em si nem seja essa. O importante, todavia, é o seu sentido. E Kenji Mizoguchi usa justamente Contos da Lua Vaga (Ugetsu Monogatari) para retratar essa frase. Seu filme mostra que fantasias com fantasmas podem ser menos aterradoras que algumas situações reais a nossa volta.
Ambientado na época do Japão Feudal, no século XVI, a obra nos traz um país arrasado pela guerra civil, afundado em miséria e caos. Camponeses vivem a mercê de samurais, tendo que fugir constantemente de suas casas para se proteger dos soldados. Por onde passam, os samurais são como uma praga sobre a lavoura, destroem o que veem pela frente, estupram as mulheres e roubam a comida.
Num vilarejo do interior moram dois casais de camponeses. Genjurô (Masayuki Mori) e Miyagi (Kinuyo Tanaka), trabalham incessantemente na fabricação de peças de barro. O marido deseja enriquecer a qualquer custo para trazer mais conforto à esposa e seu pequeno filho, Genichi (Ikio Sawamura). Enquanto isso, Tobei (Eitarô Ozawa), um fazendeiro atrapalhado, sonha em ser samurai. Ao mesmo tempo, sua mulher, Ohama (Mitsuko Mito) tenta desencorajar essas investidas fantasiosas do marido.
Quando samurais invadem o vilarejo, os casais se separam. Genjurô, Tobei e Ohama tomam um barco com destino à cidade mais próxima para vender as peças de barro. Por segurança, Miyagi fica com o filho nas redondezas da vila, esperando o regresso do marido. Na feira de comércio, as peças de Genjurô fazem sucesso e ele consegue vende-las, juntando muito dinheiro. Porém, antes de voltar para sua morada, é convidado a levar algumas compras à casa de uma jovem, Dama Wakasa (Machiko Kyô), por quem se apaixona. Enquanto isso, Tobei compra uma armadura de samurai e deixa Ohama para seguir seu sonho.
Os limites entre fantasia e dor são contrapostos, os personagens se confundem com seus verdadeiros ideais em meio ao sofrimento causado pela guerra. Genjurô se sente no paraíso, como ele mesmo ressalta em certa passagem, ao viver um romance com Wakasa, que os moradores da cidade juram ser um fantasma. Ao mesmo tempo, Tobei consegue se tornar um famoso líder samurai. Envoltos em seus grandes sonhos, os homens esquecem-se de suas famílias. As esposas esquecidas, por sua vez, precisam se virar como podem para garantir o sustento em meio à crise.
A mística japonesa, de lendas envolvendo honra e costumes, torna Contos da Lua Vaga ainda mais especial. Não bastando o contexto dos samurais, muito abordado por Akira Kurosawa antes, Rashomon (Rashômon, 1950) e depois, Ran (idem, 1985), o filme ainda conta com sua veia fantasiosa. Qualidade essa que provavelmente serviu de inspiração para outros cineastas, como Kaneto Shindô, que misturou histórias de samurai com fantasmas em suas duas obras máximas, Onibaba – A Mulher Demônio (Onibaba, 1964) e O Gato Preto (Yabu No Naka No Kuroneko1968).
Desse modo, o principal trunfo de Kenji Mizoguchi, em seus Contos da Lua Vaga, está justamente nessa mistura entre fantasia e realidade. A confusão que os personagens vivem nesse contexto, que vaga entre sonho e pesadelo, entre paraíso e inferno, deixa o espectador com um pé atrás em grande parte do tempo. “O que realmente está se passando na obra?” E a resposta fica clara apenas no final.
*Texto escrito originalmente para o blog Cine Alphaville.
Até que enfim alguém escreveu algo (e ainda de qualidade) para esse filme. Te parabenizo cara.
Valeu!
Texto muito bom.